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Justiça Federal de Pernambuco suspende encaminhamento de adolescentes a comunidades terapêuticas

Decisão liminar, publicada no último dia 11, acolheu pedido feito em ação civil pública pelas Defensorias Públicas da União e de cinco Estados brasileiros

Justiça Federal de Pernambuco suspende encaminhamento de adolescentes a comunidades terapêuticas
#ParaTodosVerem: Foto tirada em um dos quartos da Comunidade Terapêutica Desafio Jovem Maanaim, em Itamonte, Minas Gerais, de um adolescente com o rosto coberto pelos braços e a palavra "fé" escrita em uma das mãos. Foto por: Vitor Shimomura/Agência Pública

19 de julho de 2021

Por Manuela Rached Pereira

A Justiça Federal de Pernambuco acolheu, no último dia 11, pedido feito em ação civil pública pela  Defensoria Pública da União (DPU) em conjunto com as Defensorias Públicas dos Estados de Pernambuco, Rio de Janeiro, São Paulo, Mato Grosso e Paraná, que requeriam a suspensão de uma resolução federal de 2020, que regulamentou o encaminhamento de adolescentes com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas a comunidades terapêuticas brasileiras.

Na decisão liminar, a juíza da 12ª Vara Federal de Recife (PE), Joana Carolina Lins Pereira, também determinou o desligamento, no prazo de 90 dias, dos adolescentes atualmente acolhidos em CTs – com exceção dos casos em que há ordem judicial –, e que o Ministério da Saúde se encarregue do atendimento aos egressos dessas instituições, por meio da RAPS (Rede de Atenção Psicossocial). A ordem define ainda a suspensão de financiamento federal a vagas para adolescentes em comunidades terapêuticas, salvo aquelas que integram a RAPS desde 2017, por decisão do Ministério da Saúde.

A União ainda poderá recorrer da decisão ao Tribunal Regional Federal da 5ª Região.

Sobre o pedido das Defensorias

Em 1º de julho, a DPU, junto às Defensorias Públicas de cinco Estados brasileiros (PE, RJ, SP, MT e PR), entraram com uma ação civil pública contra a resolução nº3/2020, do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad), vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública. A normativa, assinada pelo então ministro da pasta, André Mendonça, “regulamenta, no âmbito do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad, o acolhimento de adolescentes com problemas decorrentes do uso, abuso ou dependência do álcool e outras drogas em comunidades terapêuticas”.

Na prática, a resolução federal estabelece que a adesão à internação de jovens de 12 a 18 anos incompletos poderia ser feita de maneira voluntária e com autorização de um dos pais ou do responsável legal.

Na ACP, as Defensorias argumentam que a norma foi expedida pelo órgão colegiado responsável pela política sobre drogas sem a participação do Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), responsáveis pelas políticas de atendimento à criança e adolescente e de serviços socioassistenciais. Além disso, os autores afirmam que a resolução desconsidera a Política Nacional de Atenção à Saúde Mental e ao Uso de Álcool e Outras Drogas, implantada pela Lei Federal nº 10.216/2001, e a regulação do Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei Federal nº 8.069/1990.

“Se o Conad deseja regulamentar uma forma de acolhimento de crianças e adolescentes em comunidades terapêuticas, é ilegal que essa regulamentação seja unilateral, sem a participação e aprovação conjunta com os conselhos legalmente competentes para a matéria”, pontuam em nota publicada no site da DPE–SP.

Na Ação, lembram ainda que a resolução federal foi assinada depois que, em julho de 2019, o governo Bolsonaro alterou a composição do Conad e excluiu as vagas destinadas a especialistas e integrantes da sociedade civil. Na nova composição, o órgão passou a ter 14 membros, sendo 12 com cargo de ministro, indicados por Ministério ou órgão federal e dois integrantes de Conselho Estadual e órgão estadual sobre drogas. Foram excluídas diversas organizações da sociedade civil, como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), o Conselho Federal de Medicina (CFM), o Conselho Federal de Educação (CFE), a UNE (União Nacional dos Estudantes) e a SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência).

Outro argumento das defensorias é que “a Resolução repete, na maioria dos dispositivos, a Resolução nº 01/2015, que tratou do acolhimento de adultos em comunidades terapêuticas”. De acordo com a ACP, no documento de 2015, o Conad apontou que, no prazo de um ano, seriam realizadas discussões com o Conanda para a regulamentação, se fosse o caso, do acolhimento de adolescentes em comunidades terapêuticas. No entanto, “o Conanda se posicionou contra a possibilidade de qualquer tipo de acolhimento ou internação de adolescentes em comunidade terapêutica, por entender que estariam gravemente violados os direitos humanos fundamentais desse grupo vulnerável”, ressalta a publicação da Defensoria paulista.

Ainda na ação civil pública, os autores também argumentam “haver riscos concretos decorrentes das consequências da Resolução, as quais já podem ser percebidas, mesmo com sua recente edição, como se extrai do exemplo da Comunidade Terapêutica Desafio Jovem Maanaim, em Itamonte (MG)(…)”. Detalham que, na referida instituição, em outubro de 2020, teriam sido encontrados 38 meninos sendo submetidos a uma rotina de religiosidade imposta, ameaças e violência física, segundo reportagem da Agência Pública.

Além disso, o pedido sustenta que, na mesma comunidade terapêutica mineira, um adolescente de 16 anos fora assassinado com golpes de enxada na cabeça, desferidos por outro adolescente internado. E sobre o caso, conclui: “Não obstante, apesar da morte violenta do adolescente e das inúmeras denúncias de violações de direitos humanos e torturas, a entidade continuaria habilitada para receber repasses públicos, em especial do Governo Federal”.

#ParaTodosVerem: Foto de adolescente sentado cabisbaixo em cama beliche de um dos quartos da Comunidade Terapêutica Desafio Jovem Maanaim, em Itamonte, Minas Gerais. Foto por: Vitor Shimomura/Agência Pública

Destaques da liminar

Na decisão liminar, a juíza Joana Pereira assinala que “à luz de todo o panorama legislativo descrito acima, evidencia-se que o aludido Conselho [Conad] extrapolou os limites do seu poder regulamentar”. “Note-se que não há, seja na Lei nº 11.343/2006, seja no seu decreto regulamentador (Decreto nº 5.912/2006), qualquer menção ao acolhimento de adolescentes nas entidades mencionadas.”.

A magistrada observa ainda “ter sido o próprio CONAD que atribuiu a ele próprio a incumbência para regulamentar o acolhimento de adolescentes em comunidades terapêuticas”. E sobre isso, sustenta: “Uma atribuição de tal natureza equivaleria – grosso modo – a uma situação hipotética em que o Ministério da Infraestrutura se autoconcedesse a competência para regulamentar a instalação de grandes empreendimentos na Amazônia, sem a participação do Ministério do Meio Ambiente”.

A juíza rejeitou os argumentos apresentados pelo governo federal na ação. A União disse, por exemplo, que “não se poderiam confundir internação e acolhimento”. A este ponto, Pereira rebateu: “O vácuo na lei 11.343/2006 não deve ser interpretado como uma autorização implícita para dito acolhimento de adolescentes. Ao revés, a permanência de adolescentes em comunidades terapêuticas – frise-se – contraria a orientação do ECA”.

O que pensa o Desinstitute

O Desinstitute celebra a decisão liminar e reitera a importância da desinstitucionalização definitiva de jovens e adultos residentes de comunidades terapêuticas no Brasil. Na avaliação da organização, em nome da proteção e do cuidado, as CTS – muitas delas financiadas com recursos públicos – produzem formas de exclusão, sofrimento e maus tratos contra pessoas em sofrimento psíquico e com transtornos mentais, que incluem crianças, adolescentes, idosos e usuários de álcool e outras drogas (para saber mais, acesse aqui o último relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas).

Para Daniela Skromov, diretora de relações institucionais do Desinstitute, que é também defensora pública do Estado de São Paulo, a ACP ajuizada pelas Defensorias Públicas representa uma importante conquista social, em meio a tantos retrocessos institucionais impostos aos campos da saúde mental e dos direitos humanos nos últimos cinco anos. “Afinal, o que segue em jogo é a vida de crianças e adolescentes com necessidades de acolhimento e cuidado, que devem ter garantido o direito à convivência escolar, comunitária e familiar”, afirma.

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