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Nota de posicionamento referente à audiência pública “Políticas públicas de saúde mental e drogas no Amapá”
Organizada pelo Movimento da Luta Antimanicomial amapaense, nota reúne mais de 30 assinaturas de movimentos sociais e organizações civis, entre elas o Desinstitute
30 de setembro de 2021
Desde 2016, diversas políticas públicas de estado sofrem um desmonte. Tal ameaça foi impulsionada no último ano pelo Brasil de Bolsonaro, enfatizando aqui a política de saúde mental e cuidado da pessoa usuária de drogas, assegurada pela Lei nº 10.216 de 2001 – também conhecida como Lei da reforma psiquiátrica. Décadas de luta, trabalho, pesquisa e atuação de profissionais e usuários dos serviços estão sob ataque. E um dos nomes mais atuantes nessa marcha do conservadorismo veio ao Amapá recentemente. Em 22/09 ocorreu na Assembleia Legislativa do Amapá (ALAP) a audiência pública Políticas públicas de saúde mental e drogas no Amapá, onde fez fala Quirino Cordeiro Júnior, Secretário de Cuidados e Prevenção às Drogas. Além dele, estiveram presentes representantes do Conselho Estadual de Prevenção, Tratamento, Fiscalização e Repressão do Uso Indevido de Substâncias Psicoativas, do poder judiciário, liderança de Comunidade Terapêutica (CT) e apenas uma pessoa do Movimento de Luta Antimanicomial do Amapá (MLA-AP), representando os verdadeiros afetados pelo desmonte dessas políticas.
Dr. Quirino direcionou diversos ataques nominais ao Movimento da Luta Antimanicomial e à nossa representante do MLA-AP e atacou a atual legislação sobre saúde mental, que preconiza o cuidado em liberdade, referindo-a como política “ideológica” sem comprovações científicas, contrapondo-a de forma inóspita ao tratamento “efetivo” das Comunidades Terapêuticas. O secretário prometeu jamais legalizar nenhuma droga no Brasil – posicionando-se inclusive contra o PL 399, que busca regularizar a cannabis para uso medicinal. Conclui-se que a forma como a Audiência Pública foi organizada, desde a composição da mesa ao espaço de tempo para fala predominante ao referido Secretário, tratou-se de um momento para ampla defesa de políticas manicomiais, favoráveis a privação de liberdade de usuários de álcool e outras drogas como forma de “tratamento” – defesa sem embasamento científico. Para mais, observamos que o público presente era, em sua grande maioria, defensor dessas instituições – sem contar os próprios representantes das CTs, que estavam ali objetivando fortalecer suas posições e buscar o apoio dos governos federal e estadual para regularizar e financiar esses locais. Ou seja, constatamos que tal audiência foi orquestrada para apoiar e habilitar as Comunidades Terapêuticas existentes no Amapá.
Por se tratar de pessoas reais com problemas reais, é importante se ater aos fatos. Em 2018, a audiência pública da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) no Texas (EUA) recebeu, pela primeira vez, denúncias sobre o funcionamento de Comunidades Terapêuticas no Brasil, apresentadas pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. No mesmo ano, a Comissão, que é o principal órgão autônomo da Organização dos Estados Americanos (OEA), visitou o Brasil para analisar a situação de grupos sociais atingidos por processos estruturais de discriminação e desigualdade no país, que resultou no relatório Situação dos Direitos Humanos no Brasil (2021). De acordo com o documento, o governo federal registrou a existência de 2 mil CTs no país, das quais pelo menos 316 seriam financiadas com recursos públicos. No entanto, o número estimado de CTs em território nacional poderia chegar a 6 mil. Ao analisar as “deficiências apresentadas pelas Comunidades Terapêuticas, que acabam inserindo seus usuários em situações que violam seus direitos”, a Comissão reconhece que o Estado brasileiro “é igualmente responsável por essas instituições, notadamente aquelas financiadas por recursos públicos”. Por fim, a Comissão conclui “que não está cientificamente comprovado que a privação da liberdade das pessoas que consomem drogas em centros hospitalares contribua para a sua efetiva reabilitação”. Reitera ainda a importância de promover alternativas à privação de liberdade, “mediante tratamentos que evitem a institucionalização de pessoas e que permitam uma abordagem dessa questão desde um enfoque de saúde e direitos humanos.”. Ademais, enfatiza-se que a política de redução de danos não é ideológica, internacionalmente reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS), é política oficial na Holanda, Grã-Bretanha, Canadá e Austrália.
De acordo com o Painel de Saúde Mental (2021) apresentado pelo Desinstitute, o Amapá protagoniza o pior cenário nacional de efetivação da política pública de saúde mental. Além disso, pesquisas locais realizadas pela UNIFAP (Oliveira, 2018) analisam o perfil dos usuários que frequentam o CAPS-AD, um dos mais conhecidos e demandados dispositivos do SUS que opera como uma unidade pública de saúde destinada a pessoas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas. Apesar do quadro nada favorável, a pesquisa comprova a eficácia do cuidado em liberdade inclusive para os que optam pela manutenção da abstinência, uma vez que mais de 50% dos 301 prontuários de usuários analisados mantiveram-se abstêmicos. Em contraponto, o Relatório Estadual de Inspeção das Comunidades Terapêuticas de 2018 realizado pelo Ministério Público Federal e Ministério Público Estadual indica que, além de apresentarem irregularidades nas internações involuntárias, verificou-se nesses locais violação da liberdade religiosa, exploração de trabalho como ferramenta de disciplina, contenção química e física, privação da educação de menores e ausência de projetos de desinstitucionalização – ou seja, não se investe no retorno à vida em sociedade.
O Movimento da Luta Antimanicomial do Amapá se posiciona contra a ascensão de políticas punitivistas que fortalecem as iniciativas privadas e o desmonte do Sistema Único de Assistência Social, do Sistema Único de Saúde, da Rede de Atenção Psicossocial. Na audiência, usamos 10 minutos de exposição para pautar questões propositivas – abertura do primeiro CAPS-AD 24 horas e da primeira Unidade do Serviço de Acolhimento Institucional para a população em situação de rua, ainda inexistentes no Amapá, ao passo que temos aqui mais de dez Comunidades Terapêuticas. Tal Audiência Pública é um recorte dos ataques diários que os usuários de drogas e a população em situação de rua vivenciam no extremo norte do país sem a garantia dos seus direitos mais básicos. O Movimento da Luta Antimanicomial do Amapá está a cada dia mais fortalecido por meio da resistência de todos que sofrem com este desmonte, além de profissionais exaustos sem condições de trabalho e de todas as pessoas que somam na luta. A luta antimanicomial é geral quando a “desrazão” é estabelecida como mecanismo de dominação e continuaremos lutando contra ela, pois somos merecedores de uma vida digna em sociedade.
Macapá-AP, 27 de setembro de 2021.
Assinam essa nota:
– Movimento da Luta Antimanicomial do Amapá (MLA AP);
– Movimento da Luta Antimanicomial do Pará (MLA PA);
– Movimento Nacional da Luta Antimanicomial (MNLA);
– Desinstitute;
– Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME);
– União Nacional LGBT no Amapá (UNALGBT AP);
– Coletivo Utopia Negra Amapaense;
– Central Sindical Popular (CSP) – Conlutas Amapá;
– Projeto Joga na Roda Amapá;
– Programa de Pós Graduação em Psicologia da UFPA (PPGP – UFPA);
– Rede Unidas;
– Fórum Gaúcho de Saúde Mental;
– Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas;
-Articulação Nacional de Psicólogos transexuais e travestis;
-Articulação Nacional de Psicólogos Negros e Pesquisadores;
– Conselho Regional de Psicologia PA/AP;
– Conselho Regional do Serviço Social AP;
– Observatório da Democracia, Direitos Humanos e Políticas Públicas da UNIFAP;
– Movimento Nacional da População de Rua;
– União Nacional LGBT;
– Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial – RENILA;
– Associação dos Usuários dos Serviços de Saúde Mental de MG (ASUSSAM/MG);
– Associação de Usuários e Familiares de Usuários dos Serviços de Saúde Mental de Alagoas (ASSUMA/AL);
– Associação de Usuários, Familiares e Amigos da Luta Antimanicomial de Palmeira dos Índios/AL (ASSUMPI/AL);
– Associação Loucos Por Você – Ipatinga/MG;
– Coletivo Baiano da Luta Antimanicomial (CBLA);
– Fórum Cearense da Luta Antimanicomial;
– Fórum de Saúde Mental de Maceió/AL;
– Fórum da Luta Antimanicomial de Sorocaba (FLAMAS/SP);
– Fórum Mineiro de Saúde Mental;
– Fórum Estadual de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil do Amapá (FEPETI – AP);
– Frente Mineira Drogas e Direitos Humanos;
– Movimento da Luta Antimanicomial do Pará;
– Movimento Pró-Saúde Mental do DF;
– Núcleo de Estudos Pela Superação dos Manicômios (NESM/BA);
– Núcleo de Mobilização Antimanicomial do Sertão (NUMANS/PE-BA);
– Núcleo Estadual da Luta Antimanicomial Libertando Subjetividades/PE