Notícias e publicações
Desinstitute: Por que somos?
É a partir de um contexto estrutural e estruturante, atravessado pela estigmatização de pessoas, pela violência institucional e pelo desmonte de políticas em saúde mental, que o Desinstitute passa a existir e construir sua agenda de trabalho
6 de abril de 2021
Por mais de 200 anos, políticas públicas brasileiras no campo da saúde mental foram pautadas e executadas sob a lógica da internação e exclusão de pessoas rotuladas como loucas e diagnosticadas a partir de um sofrimento psíquico ou transtorno mental. Em muitos casos, entre os internados estavam usuários de álcool e outras drogas, pessoas com deficiência, em situação de rua e vulnerabilidade político-social – até o século passado, conhecidos como “alienados” e “improdutivos” da sociedade.
Enquanto o modelo de internação forçada era amplamente defendido como uma prática eficaz de tratamento por grupos de interesses particulares com ingerência política e econômica no Estado brasileiro, o atendimento prestado em hospitais psiquiátricos e manicômios judiciários resultava em maus tratos, abandono, castigos, medicalização excessiva, ruptura de laços sociais e, em muitos casos, na morte e desaparecimento de pacientes.
Reforma Psiquiátrica brasileira
Há mais de 30 anos, porém, a política nacional de saúde mental passou por transformações guiadas por um processo de reforma psiquiátrica iniciado no final dos anos 70, a partir do surgimento de movimentos sociais formados majoritariamente por trabalhadores da saúde, associações de familiares, sindicalistas e pessoas com longo histórico de internações psiquiátricas.
Nas décadas seguintes, em compasso com a redemocratização do país e a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), pela Constituição de 1988, surgiram as primeiras demonstrações práticas e efetivas do que propunham os defensores da reforma psiquiátrica. Naquele período, foram implementados, nos municípios de São Paulo e Santos, os primeiros Centros e Núcleos de Atenção Psicossocial (CAPS e NAPS), que possibilitaram a transferência de egressos do sistema manicomial hospitalar para serviços sociais integrados voltados à promoção do cuidado em liberdade e à reinserção social de seus usuários.
As primeiras experiências regionais bem sucedidas de atendimento psicossocial de base comunitária inspiraram, ainda no final dos anos 80, a formulação – e posterior aprovação – da Lei nº 10.216, conhecida nacionalmente como “Lei da Reforma Psiquiátrica”. Promulgada em 2001, a legislação estabeleceu novas diretrizes para políticas de saúde mental, orientadas pelo respeito à cidadania e aos direitos da pessoa com transtorno mental.
Com a aprovação da lei, previa-se a extinção progressiva dos manicômios no país, a serem substituídos ao longo dos anos seguintes por uma rede complexa de serviços comunitários, nos quais compreende-se o cuidado em liberdade como elemento fundamentalmente terapêutico. Dessa forma, estabeleceu-se, entre outras garantias, que a pessoa com transtorno mental, “sem qualquer forma de discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno (…)”, deve ser “tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade [art. 2º, § II]”.
Materializada na lei, a reforma psiquiátrica buscava, portanto, orientar os poderes executivos a investirem em processos de desinstitucionalização de pessoas internadas por longos períodos de permanência – grande parte delas sem qualquer vínculo remanescente com a sociedade. Ou seja, procurava incidir sobre discursos, saberes e práticas psiquiátricas seculares que, no passado e até hoje, sustentam o estigma da loucura pelo diagnóstico da “doença mental” e, em muitos casos, da “dependência química”, a fim de defender a internação hospitalar, o absenteísmo e a segregação social como princípios básicos de tratamento em saúde mental.
Vale ressaltar que a mudança de paradigma da política nacional de saúde mental, bem como a construção de novos serviços de base comunitária no campo, levaram a Organização Mundial da Saúde (OMS) a reconhecer, em 2003, a relevância global da política pública brasileira. Foi também sob esse novo contexto que a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), principal órgão autônomo da Organização dos Estados Americanos (OEA), condenou o Estado brasileiro, em 2006, pelo que ficou conhecido como o “caso Damião Ximenes Lopes” – jovem brasileiro espancado e morto em um hospital psiquiátrico no município de Sobral, Ceará, naquele mesmo ano.
Outras conquistas no campo normativo acompanhadas de forte mobilização internacional foram a aprovação, pelo Congresso brasileiro, da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (com status de Emenda Constitucional) no ano de 2009, e a criação da Lei 13.146/2015, conhecida como Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI), que abarca os direitos das pessoas com transtornos mentais ou decorrentes do uso de álcool e outras drogas.
Nas últimas décadas, portanto, a pressão popular de movimentos antimanicomiais, somada ao monitoramento de órgãos de controle nacionais e internacionais, contribuiu para o fortalecimento e a ampliação de leis, políticas e serviços públicos comunitários de atenção psicossocial no Brasil. Um processo recente que resultou no fechamento de milhares de leitos em hospitais psiquiátricos pelo país – de 2002 a 2020, foram reduzidos 37.464 leitos SUS em psiquiatria.
Desmonte da política nacional
Apesar das significativas conquistas alcançadas com a implementação do Sistema Único de Saúde e pelo processo gradativo de reforma psiquiátrica no Brasil, políticas e serviços públicos de saúde e assistência social vêm sendo desmontados e aparelhados por grupos de interesse privado desde o final de 2016. A falta de monitoramento e transparência sobre o desenvolvimento das políticas de saúde mental no país são algumas das marcas que inauguram essa mudança.
Durante a gestão federal interina de Michel Temer e, nos últimos anos, sob o governo do atual presidente da República Jair Bolsonaro, recursos federais, antes voltados à ampliação de serviços de base comunitária inseridos no SUS, foram paralisados, ao passo em que representantes de entidades privadas, que incluem associações psiquiátricas e empresários ligados a instituições asilares, passaram a incidir cada vez mais sobre a agenda pública.
Em 2017, por exemplo, o Ministério da Saúde, à revelia de qualquer diálogo com a população, a sociedade civil ou mesmo órgãos voltados ao controle social, como o Conselho Nacional de Saúde (CNS), incluiu os hospitais psiquiátricos no centro da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que estrutura a política de saúde mental brasileira, por meio da alteração de portarias ministeriais.
Já em 2019, as comunidades terapêuticas, que baseiam seus serviços no tripé laborterapia (trabalho não remunerado), oração e abstinência, passaram a ser regulamentadas pela Lei 13.840, conhecida como “Nova Lei de Drogas”, e amparadas na Política Nacional sobre Drogas (Pnad), que desde então prevê “estimular e apoiar, inclusive financeiramente, o aprimoramento, o desenvolvimento e a estruturação física e funcional das Comunidades Terapêuticas (…)”.
Segundo informações do Ministério da Cidadania, o repasse de recursos públicos a entidades que administram comunidades terapêuticas no país passou de R$157 milhões, em 2019, para R$300 milhões, em 2020. À medida em que a ampliação do investimento ocorria, órgãos e mecanismos públicos nacionais denunciavam a falta de fiscalização, publicização de informações, diretrizes práticas e critérios técnicos que garantiriam o funcionamento legal dessas instituições no país.
A despeito da “Lei da Reforma Psiquiátrica”, que proíbe a “internação de pacientes com transtornos mentais em instituições com características asilares”, comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos brasileiros seguem recebendo grandes investimentos públicos e funcionando como locais de privação de liberdade e graves violações de direitos humanos, como revelam os relatórios das últimas inspeções nacionais em Comunidades Terapêuticas (2018) e Hospitais Psiquiátricos (2018/2019).
Sob a coordenação de órgãos e conselhos públicos como o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, o Conselho Federal de Psicologia e o Conselho Nacional do Ministério Público, as inspeções brasileiras alertam, desde 2015, para a situação alarmante de desassistência na atenção à saúde em hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas pelo país, onde foram verificadas graves e múltiplas violações cotidianas de direitos humanos contra pessoas em sofrimento ou com transtorno mental, que incluem aquelas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas. Entre as ilegalidades, foram constatadas condições sanitárias degradantes, falta de infraestrutura e equipe técnica, práticas de tortura, medicalização excessiva, trabalho forçado e crimes de cárcere privado, que remontam o passado de violações em hospícios e manicômios judiciários.
Adicionalmente, a insuficiência de dados públicos atualizados limita a possibilidade de análise da evolução dos gastos federais nos últimos anos com políticas de saúde mental, álcool e outras drogas. Mas o acesso ao orçamento do Ministério da Saúde destinado aos procedimentos de internação em hospitais psiquiátricos brasileiros, em 2017 e 2018, permite constatar um crescimento expressivo do financiamento público em hospitais psiquiátricos em detrimento dos recursos aplicados na rede pública extra-hospitalar, composta por serviços como os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), as UAs (Unidades de Acolhimento) e os Centros de Convivência e Cultura (veja no gráfico abaixo).
“Guerra às drogas”
Soma-se à interferência desses e de outros grupos de interesse particular nas esferas legislativas e executivas, o recrudescimento da Justiça Criminal que, respaldada pela política proibicionista de “guerra às drogas”, resulta no aumento descontrolado da repressão policial contra populações marginalizadas e do encarceramento em presídios, instituições socioeducativas e hospitais de custódia, principalmente a partir da aprovação da “Lei de Drogas” (nº11.343), em 2006.
Segundo o último relatório do Infopen, do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), em dez anos, a população prisional quase dobrou. Em 2006, eram pouco mais de 400 mil pessoas presas, enquanto em 2017, já eram cerca de 727 mil, sendo 32% presos provisórios, ou seja, sem condenação. O relatório aponta ainda que o tráfico de drogas foi responsável por mais de 60% das prisões de mulheres e 26% do encarceramento de homens.
Assim, em nome do “combate às drogas”, milhares de pessoas são privadas de liberdade e mortas todos os anos no Brasil, sobretudo negros, jovens com baixa escolaridade e moradoras de regiões periféricas, ainda que os maiores registros de porte e consumo de drogas no país sejam, respectivamente, entre brancos e com ensino superior completo, de acordo com o III Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira (LNUD).
O mesmo processo estrutural de racismo e criminalização da pobreza, que elevou o Brasil à terceira maior população carcerária do mundo, fortaleceu políticas de internação e prisão de pessoas usuárias e/ou traficantes de drogas, em detrimento de uma rede de atenção comunitária baseada no cuidado em liberdade e na abordagem de redução de danos. Ou seja, orientada por práticas de cidadania e inclusão social, que consideram o protagonismo do usuário sobre as suas próprias decisões, bem como sua singularidade, história, cultura e seu cotidiano.
Contexto pandêmico
Soma-se aos retrocessos públicos dos últimos anos, a situação particular em que vive o Brasil e o mundo com a pandemia da Covid-19. No que se refere às pessoas privadas de liberdade, em 2020, eram aproximadamente 800 mil pessoas mantidas no sistema prisional, segundo o Banco de Monitoramento de Prisões, do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), e outras milhares internadas em comunidades terapêuticas, hospitais psiquiátricos e Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTPs) no país.
Em um momento no qual a orientação é o distanciamento social, essa parcela da sociedade, formada majoritariamente por pessoas pobres, negras e sem acesso a serviços básicos de saúde, assistência e justiça social, está confinada em espaços insalubres, superlotados e, via de regra, sem qualquer assistência médica, em condições de seguir orientações mínimas de cuidado pessoal e preventivo, ou mesmo de serem testadas e monitoradas para verificação de eventuais infecções.
Por fim, observa-se que governos e instituições nacionais, bem como representantes de outros Estados latino-americanos, têm minimizado a importância dos fatores sociais na saúde física e mental de suas populações, ao priorizar enfoques predominantemente clínicos e segregadores que, historicamente, negligenciam a importância dos vínculos familiares e comunitários, do convívio social, do acesso a serviços qualificados e estruturados de atenção básica, da liberdade e igualdade de oportunidades a todas as pessoas. Um contexto que torna precisamente escassa a visibilidade e atenção que tem recebido o SUS e as políticas de saúde mental no Brasil e em outros países da América Latina – onde a falta de transparência e prestação de contas à sociedade perpetua graves e constantes violações de direitos no campo da saúde, da saúde mental e da justiça social.
É diante dessa realidade estrutural e estruturante, atravessada pela estigmatização de pessoas que destoam de uma suposta normalidade civilizatória, pela violência institucional e pelo desmonte de conquistas sociais, que o Desinstitute é criado e organiza sua agenda de trabalho. Com foco no Brasil e na América Latina, sua principal missão é influenciar e respaldar tecnicamente a formulação e o desenvolvimento de políticas e ações públicas baseadas em evidências e orientadas por princípios de garantia dos direitos humanos a todas as pessoas.