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Roberto Tykanori: “A Reforma Psiquiátrica é um processo civilizatório, o contrário do jogo neoliberal”

O psiquiatra e ex-coordenador de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas, do Ministério da Saúde, explica a relação entre o desmonte das políticas da área e a exacerbação do neoliberalismo, além de propor alternativas, que fogem completamente ao senso comum, para o cuidado de pessoas em sofrimento psíquico associado ao uso de drogas

Foto de Roberto Tykanori Kinoshita discursando
Psiquiatra Roberto Tykanori Kinoshita. Crédito: Empresa Brasil de Comunicação - EBC

3 de junho de 2022

Por desinstitute

Entrevistado nesta última edição do Conversa Livre, especial do Desinstitute para o mês da Luta Antimanicomial, o psiquiatra Roberto Tykanori coordenou a política de Saúde Mental, Álcool e Drogas do Ministério da Saúde entre 2011 e 2015. Atualmente, é médico da Prefeitura do municípios de Santos, no litoral paulista, atuando em um Centro de Atenção Psicossocial – álcool e drogas (CAPS-ad), além de ser professor adjunto da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Tykanori possui graduação em Medicina pela Universidade de São Paulo (USP) e doutorado em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). 

Em todos os anos, entre 2011 e 2015, o psiquiatra participou da delegação brasileira na Comissão de Narcóticos e Drogas (CND), da Organização das Nações Unidas (ONU), em Viena, na Áustria. Além disso, representou o Ministério da Saúde em reuniões na Organização Mundial da Saúde (OMS), na Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), no Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) e no National Institute of Mental Health (NIMH) nos Estados Unidos. Adquiriu assim, amplo conhecimento sobre as pesquisas mais promissores no âmbito internacional quanto aos cuidados e prevenção ao uso problemático de álcool e drogas. 

Nesta entrevista, Tykanori faz um balanço das relações, tensões criativas e embates entre os movimentos sociais antimanicomiais e as gestões governamentais das políticas públicas de saúde mental. Ele considera que, apesar de ter um caráter de “solução de compromisso”, concebida a partir dos arranjos e disputas entre as forças em movimento, a Lei 10.216, mais conhecida como “Lei da Reforma Psiquiátrica”, de 2001, possui uma essência “civilizatória”. No entanto, essa ampliação da cidadania promovida pela legislação antagoniza com a tendência de exacerbação das políticas neoliberais, que derivam, mundialmente, da crise econômica de 2008, e, no nível nacional, têm como marco o golpe de 2016 contra o governo de Dilma Rousseff.

O entrevistado ressalta que: enquanto as forças democráticas no Brasil, com o fim da Ditadura Civil-Militar (1964-85), intencionavam e buscavam consolidar, enfim, um Estado de Bem-Estar Social — intenção da qual a política de acesso universal (para toda a população, sem restrições) do Sistema Único de Saúde (SUS) é uma clara demonstração no período da redemocratização — globalmente, vivia-se a ascensão de uma nova ordem que preconizava uma ideologia individualista, em detrimento do coletivo e da participação popular. As décadas de 1970, 1980 e 1990 foram marcada por uma nova fase do capitalismo: o neoliberalismo.

Posteriormente, na contramão disso, as populações de vários países da América Latina, entre esses o Brasil, profundamente insatisfeitas com a desigualdade, elegeram governos progressistas que buscavam, pelo menos, ampliar o acesso aos direitos sociais, amenizar a pobreza e expandir o desenvolvimento econômico interno. 

A Análise do gestor perpassa diferentes níveis de abstração para explicar o porquê de a democracia estar em ataque na atual conjuntura bolsonarista, ofensiva que inclui a negação do respeito aos princípios do SUS e da Reforma Psiquiátrica. Portanto, essa forma de gestão não leva em conta o diálogo com os movimentos sociais e a sociedade civil organizada e o respeito aos direitos humanos, sobretudo, das pessoas em maior vulnerabilidade social. Na perspectiva do atual projeto de poder, que envolve a hegemonia do mercado financeiro, o avanço do agronegócio exportador e a desindustrialização, de acordo com a análise de Tykanori,  a democracia não é apenas dispensável como é um entrave a ser derrubado.

Em um segundo momento da entrevista, o psiquiatra divide com o leitor sua ampla experiência clínica nos cuidados e tratamentos envolvendo pessoas que fazem uso problemático de álcool e outras drogas.  Seu relato desconstrói os achismo mais caros ao senso comum e ao moralismo sobre as pessoas etiquetadas como “drogados” e “viciados”. Segundo Tykanori, ele e sua equipe desconstruíram preconceitos e se basearam nas evidências e estudos mais atuais e mundialmente reconhecidas no campo científico para se convencerem de que é a miséria e a desigualdade a causa da suposta epidemia de crack. O gestor relembra essa crise como seu maior desafio enquanto esteve à frente da política pública nacional de saúde mental, pois a cobertura midiática das chamadas cracolândias atraíram a atenção de diversos setores oportunistas que buscaram lucrar com a situação revelada. 

Apesar das fortes críticas às crenças sociais sobre o vício, Tykanori é propositivo. Para acolher as pessoas em sofrimento associado ao uso de substâncias, o psiquiatra não propõe a abstinência total, muito menos a demonizações dessas, mas um olhar integral ao ser humano e, sobretudo, aos seus afetos e emoções que o teriam levado a buscar nas drogas um alívios do mal-estar produzido por uma vida marcada pela competição desenfreada, desvalorização de si, solidão, dificuldade de se relacionar com os outros, exploração, instabilidade laboral e falta de acesso a direitos. Na percepção do entrevistado, todos esses aspectos precisam ser levados em conta de forma conjunta pelos gestores e profissionais da saúde mental.

Entrevista

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Desinstitute – Em termos de democracia e participação popular ou cidadã, como o senhor avalia os diálogos, as relações e as tensões entre as gestões públicas e os movimentos sociais antimanicomiais no âmbito da reforma psiquiátrica? O senhor poderia tecer uma comparação entre o contexto pós-2001, quando é promulgada a Lei 10.216, até 2015-2016, quando o governo Dilma Rousseff é derrubado, e a conjuntura atual neste aspecto?

Roberto Tykanori – É preciso ver um pouco o processo histórico do movimento social, particularmente, a luta antimanicomial tem um papel decisivo durante toda a década de 1990 para mobilização, divulgação e difusão de uma ideia nova. Que é a ideia de que é possível cuidar das pessoas com transtornos mentais sem recorrer a um hospital psiquiátrico. Entende-se que o hospital pode se tornar obsoleto e desnecessário. O movimento foi um ator importante para a aprovação da Lei [da Reforma Psiquiátrica].

Não tão organicamente, nem explicitamente, mas com certeza, o Ministério da Saúde, na época do Domingos Alves [Foi Coordenador Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas no Ministério da Saúde na década de 1990] passa a ser também um fomentador do próprio movimento social. Digamos que havia uma ressonância maior. Com a aprovação da Lei, passa-se, então, a um novo período. Passamos a ter uma oficialidade, no aparelho de Estado, de pessoas do movimento.

Pedro Gabriel Delgado [Coordenador Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, de 2000 a 2010] era originário do movimento da luta antimanicomial. Com essa institucionalidade proporcionada pela Lei de 2001, foi possível transformar aquilo que era uma vontade em função administrativa, portarias, regulamentação e financiamento. Entretanto, ocorre, ao mesmo tempo, um certo resfriamento do movimento, à medida que foi uma grande batalha, mesmo que, na verdade, a Lei 10.216 tenha sido uma solução de compromisso entre as forças que estavam em jogo. Tanto as forças que queriam o fim do manicômio, quanto as forças que queriam a manutenção do manicômio.

É uma solução de compromisso, por retratar uma situação que é contraditória. Isso não impediu que os agentes tivessem mais empenho no desenvolvimento de programas locais e estaduais. Nesse sentido, a Lei tem um papel muito importante, embora ela não corresponda ao projeto original de fim dos manicômios, mas ela corresponde, mesmo que com contradições, a uma reafirmação dos direitos de cidadania do paciente psiquiátrico. De fato, ela revoga um conceito anterior que determinava que uma pessoa diagnosticada como doente mental, automaticamente, se tornava uma pessoa incapaz civilmente.  Hoje, é o contrário, elas têm direitos a serem preservados, uma mudança no espírito da legislação.

As pessoas precisam de direitos de proteção e não de direitos de controle. Bom, então, nesse período de 2001 até 2015, a relação com o movimento social é tensa, por ser diferente do período pré-Lei. Com a Lei, nós passamos a ter uma responsabilidade com a realização e concretização. Essa parte, administrativa e burocrática, é trabalhada em um campo de contradições. A Lei não resolve o jogo de forças, pelo contrário, ela torna o jogo de forças mais complexo.

Organizar orçamento, regras, portarias, se você não faz de uma forma autocrática, passa por diversas instâncias. Envolve convencimentos, regulação, além disso, há a disputa pelo orçamento que é finito. Todos os setores buscam receitas. Essa parte deixa de ser simplesmente uma afirmação de uma vontade: busca-se a realização do que é possível de se conquistar nesse jogo de tensões e de disputas.

Por outro lado, o movimento seguiu no seu papel de tensionar sempre para aquilo que se deseja de maior e de melhor para as pessoas. Penso que isso não é um problema, penso que faz parte do processo democrático esse tensionamento. A diferença é que, a partir de 2015, passa a existir uma mudança de fundo, mas não é no campo da saúde mental, é uma diferença no país. Claramente, em 2016, há um golpe, uma derrubada de um governo de forma ilegal. Isso tem de ser deixado bem claro, nós não estamos falando de hipóteses, nós estamos falando de algo concreto. As instituições reconhecem que não houve crime [de responsabilidade], então foi um golpe político.

O golpe é um indicador das mudanças em um nível ainda mais elevado. Na composição societária brasileira, há uma ruptura no pacto social constituído lá nos anos 1980. A década de 2010 mostra sinais de que aquele pacto estava sendo rompido. No período de 2002 a 2015, há uma característica importante que é o desenvolvimento da economia interna do país, que cresce muito. Mas também existe uma recomposição do capital em nível global e os setores produtivos industriais, em particular, se retraem e o capital financeiro passa a ser predominante.

Ao mesmo tempo, o Brasil passa a ser dominado, cada vez mais, pelas forças que são de produção primária, agroexportadora. Isso leva a uma recomposição no projeto de país. Chegamos agora nesse período com uma desindustrialização brutal. Há uma ruptura por parte dos ricos, detentores de capital. Isso gera um choque, porque, dentro dessa composição, a democracia é um empecilho para o capital financeiro. Literalmente, é um capital que não depende tanto da produção pela mão-de-obra, mas da valorização de capital fictício.  Embora siga dependendo da extração de mais-valia, paradoxalmente, há muita gente que não está sendo nem sequer explorada, que sobra no processo de acumulação de capital. Sem desenvolvimento industrial, gera-se pouco emprego. Por exemplo, nos grandes setores do agronegócio, é tudo muito mecanizado. Nesse sentido, não existe o imperativo de fazer o povo trabalhar, produzir e gerar riqueza. Como o processo de acumulação se dá em uma outra esfera, a democracia, que passa pela participação dessa massa como fatores interessados no jogo político, torna-se um problema. O povo não é escutado, não há interesse e não é só no atual governo [Bolsonaro], a meu ver, é uma mudança sistêmica. 

Desde o fim da Ditadura (1964-1985), o Brasil estava vivendo um momento de maior civilidade, inclusive na contramão do mundo.  No entanto, vivemos globalmente, desde os anos 1970, uma enorme onda neoliberal, de perdas de direitos, de redução do Estado Social, de contração da democracia, enquanto o Brasil na década de 80, na contramão do mundo, aprova a Constituição de 1988, estabelece direitos, cria o Sistema Único de Saúde (SUS). No mesmo período que a gente estava montando o SUS, Margaret Thatcher [Primeira-ministra do Reino Unido, de 1979 a 1990] estava tentando desmontar o NHS [sigla em inglês do Sistema Nacional de Saúde britânico]. Penso que há algo muito particular na nossa situação histórica, é difícil dar uma explicação do porquê exatamente isso acontece, mas parecem ocorrer jogos de compensações.

Desinstitute – Havia muitas demandas represadas depois de duas décadas de ditadura e repressão, não?

Roberto Tykanori – Isso, há um respiro, muita coisa represada que passa duas, três décadas buscando se recompor, mas depois o Brasil se equaliza com o mundo. A falta de escuta não está só no atual governo, está ligada a uma mudança de conjuntura global.

Desinstitute – A partir desse gancho da mudança de conjuntura e política econômica, existe, então, uma impossibilidade de conciliar políticas econômicas de austeridade, tipicamente neoliberais, e a consolidação dos princípios da Reforma Psiquiátrica?

Roberto Tykanori – A Reforma Psiquiátrica é um processo civilizatório, de afirmação de direitos universais, vai no sentido oposto daquilo que o neoliberalismo propõe, que é a negação de direitos universais, e afirmação de direitos individuais. Sob essa ótica individualista e meritocrática, a meu ver, há um discurso que é um dispositivo, como diria Michel Foucault, que coloca a culpa da miséria e do mal-estar no indivíduo. Criam uma ilusão de que os indivíduos são capazes de conquistar as coisas, dependendo exclusivamente de seu esforço e de seu mérito. Isso é um engano. É um engano histórico, antropológico e biológico, isso não existe. Mas é uma ideologia que é muito difundida e disseminada nas almas das pessoas. Só que gera este mal-estar, porque, na verdade, a grande massa de pessoas acaba fracassando, diante desse ideal. Ninguém conquista tudo aquilo que se imagina que deveria conquistar, porque o sujeito se sente incapaz, depois se sente capaz. É uma ambiguidade contínua! Bom, nesse processo, no caso de uma pessoa que tem qualquer tipo de vulnerabilidade, ela acaba fora do jogo. Nesse sentido, a ideia de uma sociedade que busca direitos universais e trabalha com a equidade é uma antípoda do jogo neoliberal. E, neste jogo, efetivamente, a participação, a democracia não são essenciais. É possível você manter isso sem processos democráticos. Acho que essa é a questão de fundo.

Desinstitute – Quais foram os maiores desafios enfrentados na época em que o senhor era Coordenador da Política de Saúde Mental, Álcool e Drogas no Ministério da Saúde? O quão próximo os princípios da Reforma Psiquiátrica chegaram a se concretizar no Brasil?

Roberto Tykanori – Vamos por partes. A meu ver o grande desafio dos anos em que eu fiquei na Coordenação foi conciliar uma situação na qual o país vivia uma enorme pressão em relação à questão do crack. O fenômeno do crack é um fenômeno que precisa ser entendido do ponto de vista sociológico, porque em termos quantitativos é ínfimo o número de pessoas que consomem o crack. Então, foi difícil primeiro entender com maior clareza esse campo de álcool e drogas. São muitos atores presentes disputando diversas formas de abordagem. Mas não são contraposições isonômicas, são coisas diferentes disputando como se fossem a mesma.

O que eu penso: o crack mostrou um problema central, a pobreza urbana, a miséria urbana. Em muitos municípios, as pessoas começaram a aparecer em cena pública usando drogas, fumando. Foi a primeira vez que pessoas miseráveis usando drogas vieram a público. Droga proibida sempre foi objeto de consumo de quem tem dinheiro. No mínimo da classe média para classe média alta, sobretudo, cocaína. Essas questões são confusas, o consumo de maconha tem um histórico que é bem antigo. Mas, aqui, no Brasil, essa associação entre pobreza e consumo de drogas deu-se com o crack.

E vem essa pergunta: por que pessoas tão miseráveis estão consumindo crack? Minha pergunta é: por que tem tanta gente miserável? Isso foi o que me chamou mais atenção. É claro que as forças que organizam a sociedade não gostaram que isso estivesse tão visível. O raciocínio foi simplificar: “as pessoas estão na rua porque usam droga, foi a droga que levou as pessoas a se tornarem tão miseráveis”. Bom, por meio do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), contratamos uma pesquisa de avaliação sobre a população e o uso da droga. Além disso, a Fiocruz também fez pesquisas.

É mais do que evidente, as pessoas já eram miseráveis e se tornaram mais miseráveis e aí entram no mundo do crack, ou seja, a lógica é outra. Para termos essa sequência, demorou um pouco. Eu intuí, mas não tinha os dados. Hoje há suficiente evidência, para quem aceitar: de que o problema do crack está ligado originalmente à miséria. Se formos à cracolândia, de São Paulo, notamos que a esmagadora maioria nunca teve emprego formal. Só que daí aparece um médico que estava usando crack na cracolândia: “Tá vendo? O crack é uma desgraça! Até o médico fica assim”. As exceções são tomadas como a explicação do fenômeno.

Estando no governo, o enfrentamento a esse discurso é enorme! Porque as pessoas que atingem este lugar de poder, em sua grande maioria, querem manter as condições sociais como estão. Uma parte enorme do congresso trabalha no sentido da manutenção das desigualdades. Eles são os comissários do capital. Ali é um enfrentamento difícil, porque o debate ideológico, no sentido do discurso que mistifica as relações, é muito difícil. A mídia trabalha muito fortemente na idealização das coisas, cria esse imaginário confuso.

Aí o governo também se vê às voltas de fazer composições, cede aqui e ganha ali. A própria história do crack foi uma pedra no meu sapato, me incomodou muito, mas, ao mesmo tempo, permitiu que a gente pudesse ter muito recurso para o setor de saúde mental. Então, durante 2011/2015, tivemos recursos que permitiram uma expansão, inclusive modificar os critérios de serviço, porque antigamente só podia ter Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) em cidades com mais de 20-25 mil habitantes, baixamos para 15 mil, ou seja, a gente ampliou o escopo de cidades que eram elegíveis para ter CAPS. Pudemos fazer uma série de intervenções. Eu acho que isso foi possível na onda de manejar as contradições que o crack trazia, ou seja, uma capacidade de ter recursos para a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) como um todo.

  Existiu uma situação que ficou complicada, que é a questão das comunidades terapêuticas (CTs), a força das CTs no congresso é muito grande e a gente articulou uma solução de compromisso com elas, de incluí-las enquanto serviço de saúde. Isso já foi muito difícil de engolir, mas criamos uma portaria e os regulamentos para que se tornassem serviços de saúde. O fato é que nenhuma quis, porque a saúde demanda controles sanitários, o SUS é muito exigente no controle financeiro, então, as comunidades terapêuticas, esse setor, não querem controle. 

Ocorreu de um padre [dono de comunidade terapêutica] falar assim: “vocês deveriam simplesmente dar o dinheiro para nós e nos agradecer”.  Expressou esse raciocínio: “Deem o dinheiro e agradeçam porque estamos trabalhando para vocês”, é coisa de quem não tem noção do que é um Estado, do que é uma sociedade sob o regime da lei.  

Aí houve dentro do governo uma recomposição, passaram a receber dinheiro através do Ministério da Justiça, que tinha, digamos assim, umas janelas de ambiguidade suficientes para fazer esse tipo de acordo. Na Saúde, pela construção do SUS, temos um processo burocrático, muito administrativo, que acaba colocando muitos freios. Mesmo assim, atualmente, o pessoal faz algumas coisas absurdas, por exemplo, o Exército gastou recursos do SUS. Eu entendo que isso é um crime administrativo, entendeu?

Desinstitute – Esse tipo de senso comum que enfoca as exceções, o moralismo, e a demonização da substância dificultam a implementação de políticas sociais acertadas e o convencimento de que a miséria está na raiz do fenômeno do crack?

Roberto Tykanori – Esse é o problema, e aqui falo do Brasil, todo o período de guerra às drogas é um dispositivo, foucaultiano, de enfrentamento da miséria. É uma justificativa para você reprimir frações da sociedade que você quer que sejam marginalizadas e reprimidas. A guerra é um dispositivo que justifica o uso da força contra parcelas da população que você quer manter excluídas. A droga é um álibi. Consumir droga é um álibi para reprimir. Pensa-se que, então, precisamos reprimir o consumo, porque o consumo leva ao mal-estar, o consumo gera a doença. Hoje eu estou praticamente convicto de que não é o consumo que gera mal-estar. Atualmente, eu trabalho em um CAPS-ad [Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas]. Eu digo para os pacientes para que eles se deem conta: “Olha, ninguém vem num CAPS para reclamar que está tendo cansaço de estar excitado, contente e feliz. ‘Eu não aguento mais estar feliz, esse negócio de ficar cheirando cocaína, a gente fica feliz e contente, feliz e contente, eu quero um pouco de tristeza na minha vida’”. Não existe esse caso. Todas as pessoas que chegam no CAPS-ad têm uma vida miserável, sofrida e doída, na qual as drogas e o álcool são coadjuvantes nesse processo de sofrimento. E a droga é usada como alívio do mal-estar. Outro ponto que corrobora o argumento é: se as drogas, o álcool, a cocaína, o crack, qualquer droga, fossem a causa do mal-estar, da doença, por que só a absoluta minoria das pessoas vem para o CAPS? A grande maioria das pessoas consumidoras de álcool, de bebidas, de crack e de cocaína não procura atendimento. Ou seja, não se enxerga, não se coloca e não vive como dependente químico. Não recebem o carimbo de dependente químico.

Desinstitute Gostaria que o senhor falasse um pouco da sua pesquisa sobre afetos (culpa, medo e vergonha) e da ligação dessa investigação com experiências de acolhimento realizadas em seu local de atuação no CAPS-ad em Santos-SP.

Roberto TykanoriTem uma questão fundamental: a diferença é o ponto de partida. Se você está bem, está contente, está feliz e usa uma substância, você pode ficar excitada, mas você volta ao seu ponto de partida. Agora a questão é se você está triste, mal, raivosa e frustrada, e usa uma substância, o máximo que acontece é ficar um pouco próxima do normal, mas, em geral, você fica pior depois, pior do que você já estava. Se você estava no degrau menos dois, então você usa, dá uma aliviada e depois você bate próximo do zero para equilibrar e já vai parar no menos três.

Desinstitute – Por causa do estigma, da culpa de ter usado uma substância criminalizada e criminalizante também, não?

Roberto Tykanori – Isso, a queda vem por causa da pressão discriminatória da proibição, da desqualificação atribuída ao uso. É o sofrimento, o que difere da grande maioria dos consumidores chamados de recreativos, que são a maioria, e não partem desse lugar de mal-estar. Existe uma confusão na mente das pessoas. Há um discurso corrente no CAPS-ad, todo mundo diz assim: que consome, mas não tem prazer. 

O problema é que nós precisamos enfrentar o mal-estar de fundo dessas pessoas, o sofrimento, a existência sofrida dessas pessoas, esse deveria ser o objeto para trabalhar, não a droga. E a existência, o sofrimento das pessoas, têm dimensões que partem da materialidade. Se não tem comida, se não tem trabalho, se não tem condições básicas de se sustentar, isso tudo se soma à questão da subjetividade, da dignidade, do respeito e à questão da sensação de valor social, porque, se a pessoa não se sente participativa e validada na sociedade, ela vive um sofrimento tremendo. Neste ponto entra a questão do neoliberalismo que leva isso ao extremo. Se eu sou responsável pela minha pobreza, se eu sou o responsável pela minha tristeza, bom, não tem saída! Esse é um ponto importante para se compreender o processo das drogas.

Desinstitute – Existe uma convergência entre um projeto conservador, fundamentalista religioso, e um projeto também conservador, mas de setores da psiquiatria nesta contrarreforma psiquiátrica?

Roberto Tykanori – Os médicos que estão na Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) ou no Conselho Federal de Medicina (CFM), os deputados e os senadores que estão ligados a entidades religiosas e tal, são muito ligados ao Centrão na verdade. São forças de segunda, terceira linha, eles não são decisivos nas coisas, mas são oportunistas. O oportunismo implica o seguinte:  tirar o melhor lucro das oportunidades que surgem, não há ali projeto concreto, existem discursos justificativos, álibis para os saques do Estado. Isso sim, tanto pelo lado religioso, quanto pelo lado chamado técnico-médico. 

Vejo ali que existem forças ideológicas, o lado religioso é mais complexo e mais forte, neste sentido. Vamos às periferias das grandes cidades e vemos que ali tem uma articulação de força popular muito grande, é muito variado, mas é um discurso que toca na alma do povo. Acaba tendo volume de representatividade que não é desprezível. Isso é diferente desses médicos, eles não têm base social, não têm movimento, são literalmente oportunistas de ocasião mesmo. Por isso eu não faço a leitura de que sejam projetos convergentes. O aspecto religioso traz uma questão mais concreta, a desigualdade em que vivemos. A religião é um discurso que cria espaço de dignidade para as pessoas. Há um paradoxo, às vezes, a comunidade religiosa é um oásis dentro do universo da norma de competição do neoliberalismo, do individualismo. Há ações de “levar o dinheiro do povo”, como dizem, mas o rito social acolhe e valida as pessoas, psicossocialmente é um lugar de validação.

Desinstitute – Das políticas públicas que o senhor implementou durante a sua gestão como Coordenador da Política de Saúde mental e de Álcool e Drogas no Ministério da Saúde, quais o senhor considera um legado? O que foi possível de se colocar em prática?

Roberto Tykanori – Eu acho que uma coisa que fica de fato… o tema da prevenção é um problema muito complicado, porque todo mundo quer fazer prevenção e ninguém sabe o que está fazendo, eu quero dizer assim, existe pouca, racionalidade técnico-científica na discussão da prevenção, é muito achismo, é muito senso comum. Eu tive contato com o pessoal de Viena [CND – Comissão de Narcóticos e Drogas da ONU] e eles falaram assim: “Há algumas coisas que funcionam nesse campo”. Eles estavam tentando divulgar projetos de prevenção com estudos de resultados, com evidências. Fizemos um trabalho junto com o CND no sentido de trazer para o país três tipos de intervenção preventivas, que haviam sido testadas nestes lugares, nós fizemos, enquanto Ministério da Saúde, processo de importação, legalização de peças técnicas em processo de adaptação cultural, fizemos alguns experimentos. Foram centenas de cidades que tiveram esse tipo de intervenção.  A partir disso, chamamos três universidades, a Universidade de Brasília (UnB), a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), para avaliarem aquilo que a gente estava fazendo.

 Houve esse processo de aprendizagem, de ajuste. Mas a partir daí, surgiu no Brasil a Associação Brasileira de Pesquisa em Prevenção e Promoção da Saúde, que agrega um conjunto de pesquisadores e faz uma atuação no sentido de difundir essa noção de que a prevenção demanda a produção de evidências. Só para colocar um contraponto: mais recentemente, em 2021, uma colega da Unifesp fez uma  avaliação do Proerd [Programa Educacional de Resistência às Drogas, da Polícia Militar], que  mostra concretamente  que o Proerd não funciona, que em alguns casos estimula o consumo de substâncias.  Eu penso que a discussão sobre a prevenção, criação da sociedade de pesquisa, para mim é um legado.

Desinstitute – Para o senhor, enquanto pesquisador, psiquiatra e gestor, quais as melhores práticas atuais em termos de tratamento, acolhimento e cuidado para pessoas que fazem uso problemático de álcool e outras drogas? Por que a noção de que a abstinência total e o isolamento são as únicas formas de tratar problemas com drogas é tão difícil de ser desconstruída?

Roberto Tykanori – Bom, o que faz a diferença na prevenção, principalmente nas intervenções em escolas? O núcleo da história é o seguinte: você consegue modificar o comportamento das crianças em conjunto com o aumento de sua capacidade de sociabilidade, habilidades sociais, quando as crianças conseguem se sentir partes validadas, seres reconhecidos dentro de um grupo, esse é o fator que mais protege as crianças em relação ao uso de substâncias. Não tem a ver com a informação sobre drogas, mas tem a ver com educação, tem relação com o desenvolvimento psicossocial das crianças. Agora se você tem uma escola que é hierarquizante, discriminatória, é um funil de bons e maus, e não uma máquina de promoção de capacidades, obviamente, quem está fora do sistema é absolutamente invalidado, futuro, sonho e fantasia… vai tudo para o espaço. Usar droga é um alívio na vida, às vezes, é a própria afirmação disso pela transgressão, aí é uma forma mais psicológica de explicar, a pessoa se sente mal, então, transgride para dizer que tem o valor ao avesso.

Depois que eu saí do ministério, eu sou servidor municipal, então eu vim para o CAPS Álcool e Drogas daqui de Santos. Nos primeiros meses, eu achei muito estranho trabalhar lá. Existia, na época, existe difusamente, um conceito de que o problema está em que a droga causa uma transformação no corpo do sujeito, esse corpo do sujeito ficaria escravizado pela substância. Esse é o esquema geral no qual as pessoas acreditam. Quando você trabalha a partir desse núcleo, de que uma substância modifica o corpo de tal maneira a ponto de o corpo não conseguir viver sem, você tenta de alguma forma impedir que o corpo entre em contato com essa substância. Aí esse impedimento pode ser mais civilizado ou menos civilizado, pode ser mais educado, mais cordial, ou pode ser mais violento, mas no fundo é tentar colocar uma barreira entre o corpo e a substância.

Bom, esse é o problema, porque hoje eu afirmo que isso é um engano, que serve no final das contas para justificar todos os álibis, esse é o núcleo dos álibis da repressão da política antidrogas. Porque nessa forma de conceber você não tem outra solução a não ser a repressão, tem que controlar a conduta. Todas as políticas de drogas, no mundo, são neste termo, controle de oferta e controle da demanda, o que é conversa de mercado. É esse o raciocínio que está colocado em cima de um mito biológico, por que um mito biológico? O corpo se adapta às substâncias? Sim! A todas as substâncias que a gente entra em contato, não só com droga, o corpo se adapta a tudo, a vida é um processo de adaptação contínua. Agora como é que o corpo se adapta continuamente? É porque a lógica do corpo não responde ao ambiente, a lógica do corpo responde à lógica interna dele, o corpo precisa manter as regularidades na composição interna. O corpo não sofre interação instrutiva, portanto, uma substância não instrui o que o corpo deve fazer, entendeu? 

O corpo não obedece ao estímulo externo, o corpo é perturbado pelo estímulo externo e ele obedece à regra interna de reorganização para continuar vivendo. Então o corpo sempre vai tentar seguir vivendo. O problema não está em uma substância modificar o corpo e esse corpo ficar alterado para sempre, submetido a essa substância. Mas as drogas não alteram o corpo? Sim, assim como a água altera o corpo, o açúcar altera o corpo, tudo altera o corpo. Mas elas não alteram o comportamento e a conduta?  Sim, e essa é questão, o comportamento e a conduta são perturbados por uma substância, mas o corpo funciona, segundo o estado do corpo, isso depende do estado que você se encontra e não da substância.  Se você está contente, vai tomar cerveja é uma coisa, se você está na bad e toma uma cerveja, o resultado é outro. Não é a cerveja que define.  

É uma mudança de concepção que nós tivemos na nossa equipe. É isso que nos interessa trabalhar hoje: perceber, conhecer e entender quais os afetos estão presentes, como esses afetos funcionam, quais os jogos de forças internas, como a gente toma consciência deles e como aprender a manejar esses afetos. Nossa equipe aprendeu nos últimos cinco anos a pensar dessa maneira, não foi fácil, fomos quebrando todos os preconceitos. Por que nós estamos melhor? Primeira coisa, os serviços CAPS-ad são muito tensos, e é óbvio que é tenso, porque você tem ali subliminarmente uma ideia de controle, repressão, as pessoas estão tensas, os profissionais estão tensos, as famílias estão tensas. Nesta situação de tensão, tem sempre aquela fagulha de violência que desencadeia aquela confusão. Os pacientes vivem nesta condição, porque eles mesmo querem se controlar, eles querem se reprimir, incorporam uma lógica geral. É o seguinte: se você acha que é a droga o problema da sua vida privada, suas emoções, suas questões, perdem o sentido, elas não têm lugar, aí vira uma confusão, porque a pessoa não tem mais vida, não tem mais história, ela é só um drogado.

Desinstitute – O senhor representou o Brasil em muitas instâncias internacionais (OMS, OPAS, UNODC etc). Vemos que mesmo países periféricos que sofrem pressão para ter uma postura bélica em relação ao consumo e tráfico de drogas estão, pelo menos, descriminalizando a Cannabis. O que acontece no Brasil? Nessa conjuntura, a descriminalização pode parecer cada vez mais longe, mas teria sido possível que isso tivesse ocorrido antes de 2016?

Roberto Tykanori – Então, quando você cria, essa onda de querer diminuir um pouco o nível de violência, acaba criando espaço para legalização. No Brasil, paradoxalmente falando, vou pegar o estado de São Paulo, existe um ordenamento entre o crime organizado e a sociedade, no qual a violência é razoavelmente controlada.  Temos muitas mortes, com certeza, mas a violência não é difusa, ela tem regras, o PCC [Primeiro Comando da Capital] tem regras. No Rio de Janeiro, menos, mas essas regras existem. É uma composição, é um jogo de composição de forças, um controla o outro, entre os legais e os não legais, polícia, políticos, capitalistas. 

Existem setores no capitalismo que enxergam oportunidades em ganhar dinheiro legalizando drogas. Mas esse tipo de força descriminalizante joga neste paradoxo, pois a legalização não necessariamente enfrenta a desigualdade. Se mantermos a desigualdade, se não for a droga, vai ser outra coisa. Sempre vai haver algum discurso, algum tipo de álibi para reprimir os pobres. No Brasil, o jovem, negro e pobre. Se não for a droga, vai ser criado outro dispositivo para manter essa população sob controle; é interessante, mas, a meu ver, [a legalização] não resolve nossos problemas estruturais.

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