Notícias e publicações
A medicalização e a patologização como fundamentos de exclusão e segregação
7 de fevereiro de 2023
Por Thaís Lopes Rodrigues* e Jaqueline Marques**
Em tempos atuais, em que os diagnósticos têm servido à manutenção de uma estrutura de sociedade manicomial, se faz imprescindível um olhar atento ao aumento dos fenômenos da medicalização e da patologização nos modos de vida. Embora um conceito esteja ligado ao outro, há que demarcá-los para um melhor entendimento sobre a temática.
No contexto da saúde mental, patologizar é transformar em doença comportamentos ou sofrimentos que não necessariamente o são.
Antes mesmo da criação da medicina como conhecemos hoje, patologias já eram criadas para atribuir o status de doença a aspectos sociais, econômicos e políticos. A patologização, portanto, é anterior à existência de práticas medicamentosas, visando à individualização de fenômenos que se constituem, na verdade, a partir de relações coletivas (Moyses e Collares, 2013).
Para se ter uma ideia, em 1851, foi criada pelo médico Samuel A. Cartwright (EUA) uma patologia específica para diagnosticar pessoas negras escravizadas, intitulada de Drapetomania. Por esse “diagnóstico”, entendia-se que corpos negros escravizados possuíam uma tendência à fuga e à busca incontrolável pela liberdade (Carvalho, 2022).
Já a medicalização é um processo de transformação dessas experiências, consideradas indesejáveis ou perturbadoras, como objetos da saúde. Ou seja, o que é, originalmente, da ordem do social, moral ou político, passa a pertencer às práticas médicas e afins, fazendo com que as pessoas sejam objetificadas, não tendo suas subjetividades consideradas (Freitas e Amarante, 2017).
A medicamentalização, por sua vez, é um dos resultados da medicalização, não se resumindo ao campo da saúde mental. Isso porque, considera o uso de remédios, psicotrópicos ou não, como a única forma possível de cuidado (Brasil, 2019).
É possível medicar sem medicalizar e/ou medicamentalizar. Por isso, a crítica que se pretende extrair desse texto não é a contrariedade ao uso de medicações, mas que a utilização seja feita em prol do cuidado, da autonomia e da liberdade.
Nesse sentido, é importante mencionar que a medicina, assim como outras áreas de conhecimento, é uma criação histórica da humanidade e, por isso, está intimamente ligada às construções sociais. Por isso, no contexto de um sistema capitalista, a medicalização exerce uma função social específica: a da produção massiva de bens e insumos.
Desconsidera-se a exploração das forças de trabalho e responsabiliza-se o indivíduo, fazendo-o crer que precisa se adequar às altas demandas de produtividade.
É a partir da Revolução Industrial, inclusive, que pessoas consideradas improdutivas ou indesejáveis passam a ser patologizadas, já que o modo de produção capitalista que se desenhava demandava uma força de trabalho que fosse, ao mesmo tempo, dócil e produtiva (Foucault, 2014).
A loucura passa, então, a ser encarada como um problema social, pois corpos que não servissem ao capital eram considerados excedentes improdutivos da classe trabalhadora (Lima, 2021). É nesse contexto que o Estado cria os manicômios (posteriormente intitulados de hospitais psiquiátricos), como mecanismos de gestão, exclusão e segregação entre os “normais” e “anormais”.
Nessa perspectiva retrógrada, ignoram-se, como causas de sofrimento e adoecimento, as injustiças sociais, criadas a partir do modo de vida capitalista, e as violências trazidas por essa estrutura, que, na busca da homogeneização de corpos (que devem servir ao capital), produz o racismo, o machismo, a lgbtfobia, o capacitismo e demais formas de exclusão.
Partindo de uma compreensão trazida por Fanon (2008), a violência é uma estratégia de linguagem que possibilita a dominação e a ingerência sobre os corpos e suas individualidades, especialmente de pessoas negras.
Assim, pode-se afirmar que os fenômenos da patologização e da medicalização são pilares que sustentam a manutenção de uma estrutura social manicomial que precisa ser superada.
Isso porque, diferente do que muitos acreditam, os manicômios não ficaram no passado. Ainda hoje, é extensa a lista de casos graves de violações de direitos humanos cometidas em instituições psiquiátricas e asilares que, assim como antigamente, se apoiam em discursos de cuidado e tratamento para tirar de circulação pessoas em sofrimento psíquico e dissidentes de um sistema opressor que propaga uma falsa ideia de normalidade (e moralidade) como condicionante para a vida em sociedade.
Em relatório recente, realizado a partir de inspeções efetuadas pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) em 40 Hospitais Psiquiátricos, localizados em dezessete estados das cinco regiões do país, constatou-se que:
os direitos relacionados à infraestrutura do estabelecimento não são garantidos, o que reforça o aspecto asilar dessas instituições, em detrimento do caráter terapêutico típico de tratamentos de saúde.
(…)
vários estabelecimentos concorrem para a prática de tratamento desumano e degradante tendo como causas a superpopulação, as más condições sanitárias e de higiene, a violações e censuras das correspondências, e proibição de acesso aos bens pessoais. Ademais, as pessoas internadas não dispõem de vestuário adequado, água potável, alimentação, aquecimento, roupas de cama decentes e privacidade. O ambiente social frequentemente não é melhor: é negada às pessoas a oportunidade de se comunicarem com o resto do mundo, a sua privacidade não é respeitada, sofrem de tédio e de negligência, como ainda há pouca ou nenhuma oferta de estímulos intelectuais, sociais, culturais e físicos.
Assim, para que haja mudança da realidade e avanço na conquista de direitos, se faz imprescindível pensar os fenômenos da patologização e medicalização da vida enquanto processos históricos, sociais e políticos que estruturam as sociedades.
Foi a partir dessa problematização que pessoas que vivenciaram de alguma forma a realidade de aniquilamento de corpos indesejáveis à sociedade, mortos e violados nos manicômios, se uniram num movimento de reivindicação de direitos às autoridades públicas.
Inspirado pelo Movimento da Psiquiatria Democrática Italiana, liderado por Franco Basaglia, o movimento da Reforma Psiquiátrica no Brasil surgiu no final da década de 70, culminando, em 2001 (ou seja, após mais de 30 anos), na promulgação da Lei nº. 10.216, que passou a dispor sobre a proteção e os direitos das pessoas em sofrimento psíquico, redirecionando o modelo assistencial em saúde mental.
No campo jurídico, importantes normativas que redefinem o cuidado em saúde sob uma perspectiva de garantia de direitos sobrevieram: em 2009, por meio do Decreto nº. 6.949, houve a promulgação da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que possui como propósito “promover, proteger e assegurar o exercício pleno e eqüitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente” (artigo 1, da Convenção).
A Portaria nº. 3.088/2011, do Ministério da Saúde, por sua vez, institui a Rede de Atenção Psicossocial, “cuja finalidade é a criação, ampliação e articulação de pontos de atenção à saúde para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS)” (artigo 1º, da mencionada Portaria).
Posteriormente, em 2015, foi instituído, por meio da Lei nº. 13.146/15, o Estatuto da Pessoa com Deficiência, destinado “a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania” (artigo 1º, da mencionada lei).
Entretanto, embora tenhamos avançado significativamente na conquista de direitos no campo da saúde mental brasileira, a interpretação da legislação de forma isolada, ou seja, sem a compreensão do contexto patologizante e medicalizante que a antecede, pode acarretar na perpetuação da utilização de práticas manicomiais em detrimento do cuidado.
Conclui-se, portanto, que não há como se apartar a construção da loucura e da produção de saúde do contexto histórico, social, político e econômico no qual estejam inseridas. Dessa forma, despatologizar e desmedicalizar o cuidado é tarefa constante àquelas e àqueles que pretendem a construção de uma sociedade mais justa e, portanto, saudável.
Referências:
BRASIL. Lei nº 10.216, de 06 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, 2001. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm. Acesso em 30 de janeiro de 2023.
BRASIL . Decreto nº. 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007, 2009. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm. Acesso em 31 de janeiro de 2023.
BRASIL . Ministério da Saúde. Portaria nº. 3.088 de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), 2011. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt3088_23_12_2011_rep.html.Acesso em 31 de janeiro de 2023.
BRASIL . Lei n. 13.146, de 6 de julho de 2015. Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13146.htm. Acesso em 30 de janeiro de 2023.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamento de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos. Uso de Medicamentos e Medicalização da Vida: recomendações e estratégias. Brasília/DF: Ministério da Saúde, 2019. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/medicamentos_medicalizacao_recomendacoes_estrategia_1ed.pdf. Acesso em 31 de janeiro de 2023.
BRASIL . Conselho Federal de Psicologia. Hospitais psiquiátricos no Brasil: Relatório de Inspeção Nacional. Brasília/DF: CFP, 2020. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2019/12/Relatorio_Inspecao_HospPsiq.pdf. Acesso em 30 de janeiro de 2023. CARVALHO, F. M. A ‘doença’ da raça negra. Carta Capital.Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/blogs/zumbido-justica-antirracista/a-doenca-da-raca-negra. Acesso em 01 fev 2023
FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Tradução: Renato da Silveira. Salvador/BA: EDUFBA, 2008.
FOUCAULT, M. História da loucura: na idade clássica. São Paulo/SP: Perspectiva, 2014.
FREITAS, F. & AMARANTE, P. Medicalização em psiquiatria. Rio de Janeiro/RJ: Fiocruz, 2017.
LIMA, D. T. A loucura na sociedade de classes. Blog da Boitempo, 2021. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2021/09/14/a-loucura-na-sociedade-de-classes/. Acesso em 30 de janeiro de 2023.
MOYSES, M. A. & COLLARES, C. A. L. Medicalização: o obscurantismo reinventado. In: C. A. L. Collares & M. A. A. Moysés Novas capturas, antigos diagnósticos da era dos transtornos: memórias do II seminário internacional educação medicalizada: dislexia, TDAH e outros supostos transtornos. Campinas/SP: Mercado de Letras, 2013.
*Advogada,integrante da Comissão de Direitos Humanos da OAB – subseção de Sorocaba/SP, militante da luta antimanicomial, assessora jurídica do Desinstitute.
**Psicóloga, especialista em psicodrama, militante da luta antimanicomial, diretora administrativa do Desinstitute.