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Por que DF mantém leitos em hospital psiquiátrico apesar de lei pedir extinção? 

Órgão ligado ao Ministério dos Direitos Humanos denuncia maus tratos, e ex-paciente relata momentos de angústia durante internação. Em nota, Secretaria de Saúde diz que 'trabalha para cumprir legislação'.

Por que DF mantém leitos em hospital psiquiátrico apesar de lei pedir extinção? 

8 de julho de 2024

Por desinstitute

O Distrito Federal tem 83 leitos psiquiátricos em funcionamento no Hospital São Vicente de Paulo (HSVP), em Taguatinga. No entanto, uma lei distrital publicada há quase 30 anos determina o fim desse tipo de leito em Brasília.

O HSVP também contraria um protocolo nacional de 2001, que prevê a extinção progressiva dos leitos para internação de longa permanência em hospitais psiquiátricos. Então, por que ele ainda existe?

“Essa é uma pergunta que não tem uma resposta objetiva. Mas é de fundamental importância, porque nesse tempo todo nós tivemos uma série de violações de direitos humanos acontecendo nessa instituição”, diz Lúcio Costa, diretor executivo do Desinstitute, organização da sociedade civil que atua pela garantia de direitos humanos no campo da saúde mental.

Costa é psicólogo e foi coordenador de um relatório produzido em 2018 pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), órgão ligado ao Ministério dos Direitos Humanos. O documento revela más condições da estrutura do HSVP, além de tratamento desumano dado aos pacientes.

Procurada pelo g1, a Secretaria de Saúde do DF (SES-DF) informou que “trabalha na elaboração de um plano” para cumprir a legislação. Porém, a pasta não comentou sobre as denúncias feitas pelo MNPCT.

Já o Tribunal de Contas do DF (TCDF) informou que ordenou que a secretaria amplie o quadro de vagas para pacientes psiquiátricos em hospitais gerais, em detrimento à abertura de vagas HSVP.

Isso porque, de acordo com a Lei nº 975, de 12 de dezembro de 1995, os leitos psiquiátricos em hospitais e clínicas especializados deveriam ter sido extintos num prazo de quatro anos a contar da publicação da norma, ou seja, em 1999.

Dentre as denúncias feitas pelo relatório do MNPCT em relação ao HSVP, estão:

Estrutura irregular e insegura; Aspecto geral precário; Falta de insumos; Índices de cárcere privado; Medicalização excessiva; Práticas violentas.

Uma ex-paciente conta que foi internada no HSVP e passou por momentos de angústia ao ser mal tratada pela equipe médica em 2013. “Quando cheguei lá, eu estava catatônica, em estado de delírio profundo. Minha mãe estava comigo, desesperada, tentando passar o meu quadro para a médica”, relata Samantha Larroyed, de 37 anos.

“Eu só me lembro que a médica chegou perto de mim e colocou o dedo com muita força no meu colo, entre os seios, e falou: ‘Acorda, menina!’. Eu fiquei muito assustada com aquilo, fiquei acuadíssima e chorei bastante. Ela falou pra minha mãe: ‘A gente não vai poder ficar com essa garota aqui não, porque se ela morrer aqui vai dar problema pra gente'”, conta Samantha.

O movimento antimanicomial — que defende o tratamento digno e humanizado das pessoas com transtornos mentais — foi criado em 1987. Em 2001, foi sancionada a lei federal que determinou o fim dos leitos em manicômios e sanatórios no Brasil.

Um dos lemas da luta é o combate ao isolamento de pessoas com sofrimento mental. Para o psicólogo Lúcio Costa, porém, os hospitais psiquiátricos funcionam numa perspectiva de segregar um grupo social.

“Uma pessoa que não tem acesso ao trabalho, saúde, educação e relações afetivas fortalecidas é uma pessoa que não tem saúde mental. Qualquer tratamento para quem tem um transtorno mental caminha na lógica da produção de cidadania, e não da segregação dessas pessoas, como era e ainda é feito nos hospitais psiquiátricos”, explica o especialista.

No relatório do Ministério dos Direitos Humanos, de 2018, o órgão destacou que, no HSVP, por causa da quantidade excessiva de medicação, pacientes são amarrados em seus leitos, chegando a urinar e defecar em seus próprios colchões. O tratamento dado na unidade foi caracterizado pelo MNPCT como “cruel, desumano e degradante”.

“Fica claro e notório que o Hospital São Vicente de Paulo configura-se como uma instituição asilar, operando numa perspectiva de instituição total, empregando o uso da força e do controle dos corpos das (os) pacientes, como método de privar as pessoas de sua liberdade, deixando marcas e sequelas irreparáveis na vida dessa população que, ao contrário disso, necessitam de acolhimento que possa ajuda-las a superar esse momento particular das suas vidas de sofrimento mental”, diz o documento.

‘Tentaram me exorcizar’

Ex-paciente psiquiátrica fala sobre momentos de angústia vividos em internações

Samantha Larroyed, de 37 anos, tem diagnóstico de esquizofrenia. Ela conta que passou por diversas internações ao longo da vida, em diferentes hospitais psiquiátricos.

Uma delas foi no HSVP. Samantha diz que chegou a ser amarrada e submetida a situações degradantes.

“Lá [no HSVP], eles têm esse protocolo de amarrar, de deixar as pessoas sem comer por dias amarradas, urinadas. Isso já aconteceu comigo também em vários locais. Situações assim muito extremas, muito extremas mesmo”, disse a ativista ao g1. Ainda segundo Samantha, em uma de suas crises, um profissional de saúde que a acompanhava em uma ambulância chegou a dizer que ela estava com “demônio” no corpo.

“Ele botou a mão na minha cabeça e fez um exorcismo em mim, sabe? Começou a expulsar um monte de demônio, falar um monte de coisa que ele considera demônio. Falou várias coisas, eu fiquei muito mal com isso. São situações traumatizantes e de abuso mesmo, inclusive religioso”, desabafa Samantha.

Fim dos manicômios não significa desassistência

Lúcio Costa, da organização Desinstitute, explica que o fechamento das instituições psiquiátricas não significa desassistência. A luta antimanicomial quer o fim de manicômios porque eles destratam o indivíduo e o isolam da sociedade, ao invés de tratá-los.

“A lógica de fechar um hospital psiquiátrico é integrar esses leitos em um hospital geral, onde tem várias especialidades para olhar para aquele sujeito como um todo”, diz o psicólogo.

Além disso, ele defende o fortalecimento dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), equipamentos públicos destinados ao atendimento de pessoas com sofrimento mental grave, seja em situações de crise ou em processos de reabilitação psicossocial. Os CAPS devem funcionar em regime de “porta aberta”, ou seja, sem necessidade de agendamento prévio ou encaminhamento para que a pessoa seja acolhida.

“O CAPS é a instituição que toda uma rede para o cuidado dessa pessoa, que articula aquilo que eu chamei de produção de cidadania daquela pessoa, e não segrega essa pessoa numa instituição privando ela de liberdade de maneira ilegal”, pontua o especialista.

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