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Você sabia que a curatela de pessoas em sofrimento psíquico só pode ser determinada em casos excepcionais e apenas com relação a aspectos patrimoniais de sua vida?
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11 de fevereiro de 2025
Histórica e juridicamente, o conceito de curatela surge da relação entre medicina e direito. Desde o Império Romano, a legislação previa que um indivíduo poderia ser interditado se fosse considerado incapaz de gerir seu próprio patrimônio. Esse modelo foi perpetuado ao longo dos séculos e, até 2015, o Código Civil brasileiro ainda classificava pessoas em sofrimento mental como absolutamente incapazes.
A curatela, enquanto instituto jurídico, foi concebida para proteger pessoas em situação de vulnerabilidade, especialmente aquelas “incapazes de gerir aspectos de suas vidas”. Contudo, em muitos casos, em vez de garantir proteção, pode resultar em exclusão social, dependência e violação de direitos fundamentais que podem aumentar ainda mais as desigualdades estruturais.
Até a criação da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI), em 2015, pessoas com transtorno mental eram comparadas, juridicamente, a menores de 16 anos. Isso as impedia de exercer atos civis básicos, como casar-se, trabalhar formalmente e gerir suas próprias finanças – além de estarem submetidas à decisão de um terceiro sobre seu tratamento. A curatela ocorria através de um processo judicial que recebia o nome de interdição, muitas vezes sem que a pessoa interditada fosse ouvida. Bastava a apresentação de documentos assinados por curadores e atestados médicos para que o juiz deferisse a interdição.
A Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, assinada pelo Brasil em 2008, foi um marco para a garantia de direitos. Com força de emenda constitucional, a Convenção determinou que pessoas com deficiência têm direito à capacidade plena. A LBI alterou o Código Civil, tornando a curatela uma medida excepcional e limitada a questões patrimoniais e negociais. Ou seja: é somente nos aspectos patrimoniais e negociais que o curador pode atuar, devendo prestar contas da administração ao juízo.
A curatela passou a ser medida excepcional, devendo ser decretada somente quando não for possível a tomada de decisão apoiada, que deve ser utilizada como regra em casos de pessoas em sofrimento psíquico que porventura necessitem de auxílio para os atos da vida civil. Esse modelo permite que a pessoa escolha apoiadores para auxiliá-la, o que garante maior autonomia e preserva sua capacidade civil.
Entretanto, apesar da legislação avançada, barreiras culturais e jurídicas dificultam a implementação da tomada de decisão apoiada e do correto processo para definir os termos da curatela, quando for o caso. Práticas conservadoras e paternalistas tendem a prevalecer no sistema de justiça e saúde. Não são raros os casos em que se exige assinatura do curador para o consentimento de intervenções médicas, tais como a eletroconvulsoterapia, por exemplo.
O acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC) também é um exemplo dos abusos e vulnerabilidades relacionados à curatela. Estudos apontam que, em muitos casos, a curatela ainda é exigida como pré-requisito para a obtenção do benefício, o que gera dependência e favorece práticas abusivas. Há registros de curadores que se apropriam indevidamente dos recursos financeiros destinados às pessoas interditadas.
Esse problema é ainda mais evidente em populações de baixa renda, onde o Benefício de Prestação Continuada (BPC) representa uma das poucas fontes de sustento. Nessas comunidades, a curatela, em vez de proteger, transforma-se em uma ferramenta de exploração econômica. Além disso, há inúmeros relatos de abusos, como donos de hospitais psiquiátricos nomeados como curadores de vários pacientes, recebendo seus benefícios previdenciários sem repassar-lhes qualquer recurso.
Apesar da Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência garantir a autonomia e reinserção social das pessoas em sofrimento psíquico, os processos que definem os termos da curatela e sua aplicação pelos órgãos competentes ainda carregam resquícios do modelo manicomial.
A construção de uma cidadania efetiva para essas pessoas vai além de mudanças legais. É necessária uma transformação estrutural que garanta acesso à saúde, educação, trabalho e participação política. Dessa forma, é essencial que a justiça, os serviços públicos e a sociedade como um todo reconheçam o protagonismo do sujeito, rompendo com estruturas históricas de exclusão e estigma.
Precisamos disseminar os limites da curatela e fortalecer alternativas como a tomada de decisão apoiada, a fim de garantir um sistema que respeite a autonomia e a dignidade de cada indivíduo.
A curatela não é e não pode ser uma sentença de invisibilidade!