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Governo federal celebra política de drogas focada em comunidades terapêuticas
Atual PNAD prioriza investimento em instituições privadas, alvos constantes de denúncias de violações, em detrimento de serviços de base comunitária do SUS
20 de abril de 2021
Na última quarta-feira (14), o Ministério da Cidadania promoveu, em Brasília, uma cerimônia de comemoração pelos dois anos de existência da chamada “Nova Política Nacional sobre Drogas”, aprovada por decreto federal em abril de 2019 e desenvolvida pela pasta em conjunto com os ministérios da Saúde, da Justiça e Segurança Pública, da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
Um dos principais focos da atual PNAD, segundo o próprio governo, é a ampliação de financiamento público federal destinado às comunidades terapêuticas no país. Voltadas principalmente ao atendimento de usuários de álcool e outras drogas, as CTs são geridas por instituições privadas e, em sua maioria, vinculadas a religiões cristãs.
“É uma política que veio para o Brasil e disse: ‘nós acreditamos nas comunidades terapêuticas’”, afirmou a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, durante a cerimônia.
Diferente do que previa a antiga política de drogas, vigente desde 2002, os atendimentos oferecidos aos usuários das CTs têm como base a privação do convívio social e a abstinência, em substituição à abordagem de redução de danos (que propõe amenizar os riscos à saúde de quem não consegue ou não quer deixar de usar drogas), até então adotada como parâmetro nos serviços públicos de saúde no Brasil.
“Privação de liberdade, abandono, castigos e maus tratos”
Para o diretor executivo do Desinstitute, Lúcio Costa, a atualização da PNAD “implica no retorno de um projeto político secular que visa a institucionalização e a consequente exclusão social de pessoas em sofrimento psíquico e com necessidades de acolhimento decorrentes do uso problemático de álcool e outras drogas”.
“Na prática, o atual governo tem fortalecido instituições privadas vinculadas a matizes religiosas e que baseiam seus serviços na combinação de trabalho não remunerado ou sem vínculos trabalhistas, oração e abstinência, em detrimento da ampliação e melhoria de serviços públicos de base comunitária oferecidos pelo SUS, a exemplo dos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (CAPS AD)”, avalia Costa.
O diretor do Desinstitute, que é também perito do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) e que participou da coordenação geral da última inspeção nacional em comunidades terapêuticas, ressalta ainda que “na maioria das CTs inspecionadas nas cinco regiões do país, predominam práticas cotidianas de diversas violações de direitos humanos, a exemplo de tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, privação de liberdade ilegal, abandono, castigos e maus tratos”.
Ampliação do financiamento federal
Durante a cerimônia da semana passada, o ministro da Cidadania João Roma informou que, nos últimos dois anos, ao menos 55 mil pessoas passaram pelas comunidades terapêuticas brasileiras. Segundo ele, as vagas financiadas com recursos públicos federais saltaram de 2,9 mil, em 2018, para cerca de 11 mil, em 2019, quando foram repassados R$ 197 milhões às instituições.
Atualmente, ao menos 485 CTs no país são financiadas pelo governo e, para este ano, a meta é assegurar um investimento de R$ 330 milhões para a habilitação de 492 novas unidades, com 13 mil vagas adicionais patrocinadas pelo Executivo federal.
Redução de Danos
Na avaliação de Nicola Worcman, psiquiatra e diretora de assuntos científicos do Desinstitute, em nome da proteção e do cuidado da população, a atual PNAD “enfraquece a prática da redução de danos, respaldada pela Organização Mundial da Saúde e até então adotada como parâmetro nos principais serviços do SUS”.
Diante do novo cenário nacional, Worcman avalia que a atual gestão federal “exalta um modelo de tratamento coercitivo e criminalizante, em prejuízo de uma abordagem que considera o protagonismo do usuário sobre as suas próprias decisões, bem como seu contexto social, sua história, suas vivências cotidianas e suas singularidades como indivíduo”.
Além disso, a médica reforça que “ao contrário do que parece defender a atual gestão federal, a redução de danos não exclui o modelo de abstinência para o tratamento de usuários problemáticos de álcool e outras drogas, mas abrange outras possibilidades de cuidado em liberdade”.
Veja abaixo os principais pontos elencados pelo Desinstitute sobre a atual Política Nacional sobre Drogas:
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- Estimula a promoção de ações, programas e projetos que visam a abstinência em relação ao uso de drogas como meta de tratamento. Até então, os serviços públicos de saúde voltados a usuários de álcool e outras drogas tinham como parâmetro a abordagem de redução de danos, que não exclui o modelo de abstinência para o tratamento, mas abrange outras possibilidades de cuidado em liberdade, que consideram o protagonismo do usuário sobre as suas próprias decisões, bem como seu contexto social, sua história, suas vivências cotidianas e suas singularidades como indivíduo.
- Reconhece e apoia as comunidades terapêuticas como serviços referenciados de acolhimento a usuários de álcool e outras drogas. Na prática, o apoio ocorre via regulamentação e ampliação de investimentos públicos destinados às instituições – de R$ 197 milhões, em 2019, para R$ 300 milhões, em 2020, com previsão de aumento para R$ 330 milhões, em 2021. Geralmente administradas por instituições privadas e vinculadas a religiões cristãs, as comunidades terapêuticas baseiam seus serviços na combinação de trabalho não remunerado, oração e abstinência, sendo alvos frequentes de denúncias por órgãos nacionais de fiscalização, que envolvem práticas de tortura, trabalho forçado, maus tratos e crimes de cárcere privado.
- Defende a perspectiva de que a diferenciação entre “usuário”, “dependente” e “traficante” ocorra em observância com “o local e as condições em que se desenvolveu a ação de apreensão, as circunstâncias sociais e pessoais, a conduta e os antecedentes do agente.” A falta de critérios objetivos para a classificação de consumo e tráfico, reforçada na PNAD e em leis nacionais, amplia a margem para a prisão de pessoas que geralmente recebem tratamentos desiguais por agentes de segurança pública e do judiciário, a variar de acordo com a classe social e cor da pele de quem é apreendido com substâncias ilícitas.
- A orientação geral da política pressupõe a “posição majoritariamente contrária da população brasileira quanto às iniciativas de legalização de drogas”. Em nome da saúde e segurança de sua população, o governo aposta em medidas “populares” e criminalizadoras que desconsideram evidências científicas, que por sua vez apontam para o fato de que pessoas que apresentam problemas ocasionados pelo consumo de drogas classificadas como ilícitas no Brasil são a exceção e não a regra. Ignora ainda que a criminalização das drogas faz aumentar, a cada ano, os índices de encarceramento e violência letal de populações estruturalmente marginalizadas em escala muito maior que a das vítimas de drogas ilícitas.