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15 anos da Lei de Drogas: sem critérios claros para prisão, legislação acentua injustiças sociais, avalia Nicola Worcman
Em entrevista, diretora de assuntos científicos do Desinstitute analisa efeitos da política de drogas na sociedade brasileira
24 de agosto de 2021
Em 23 de agosto de 2006, a Lei de Drogas (11.343) era sancionada no Brasil. Ao revogar duas leis nacionais, de 1976 e 2002, seu texto instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad) e, entre outros dispositivos, propôs diferenciar juridicamente traficantes de usuários.
Ainda vigente, a legislação determina que uma pessoa que comercializa drogas ilegais pode ser punida com penas de 5 a 15 anos de prisão, enquanto um usuário não mais pode ser preso em flagrante, mas cumprir penas alternativas ao cárcere.
Apesar da prerrogativa legal, a diretora de assuntos científicos do Desinstitute, Nicola Worcman, avalia que a Lei não estabelece critérios claros para a diferenciação de “consumo” e “tráfico”. Por isso, explica, permite arbitrariedades institucionais, especialmente por parte da polícia e do Judiciário, que resultaram no aumento exponencial da população carcerária nacional.
Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), o número de presos e presas no país quase dobrou em dez anos da aprovação da Lei – de 401,2 mil para 726,7 mil, de 2006 a 2016. Até maio de 2021, de acordo com os dados mais recentes do Monitor da Violência, eram mais de 750 mil pessoas encarceradas – realidade que resultou na superlotação dos presídios nacionais e alçou o Brasil à posição de terceiro país que mais encarcera no mundo (em números absolutos).
Na prática, afirma Worcman, “a Lei de Drogas no Brasil não diferencia o usuário do traficante. Fica a cargo da pessoa que faz o flagrante, ou seja, do policial que está envolvido no flagrante daquela pessoa, indicar se aquele perfil, se aquele sujeito é um usuário ou um traficante”.
Passados 15 anos da aprovação da Lei de Drogas, a diretora do Desinstitute, que é também médica psiquiatra com experiência em CAPS AD (Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas/SUS), doutoranda e pesquisadora em Políticas Públicas de Drogas pela Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, faz um balanço dos efeitos da Lei 11.343/06 na sociedade brasileira, em especial entre os grupos populacionais mais estigmatizados e atingidos pelo proibicionismo. “E quem são essas pessoas?!, indaga. “Pretos, pobres, favelados e jovens”.
Leia abaixo a entrevista completa:
Desinstitute: Qual a sua avaliação sobre a Lei de Drogas brasileira?
Nicola Worcman: Atualmente, a Lei de Drogas no Brasil é uma lei que não diferencia o usuário do traficante. Fica a cargo da pessoa que faz o flagrante, ou seja, do policial que está envolvido no flagrante daquela pessoa, indicar se aquele perfil, se aquele sujeito é um usuário ou um traficante. Isso dá margem para a estigmatização e para a criminalização de um certo grupo populacional. E quem são essas pessoas? Pretos, pobres, favelados e jovens. A lei de drogas no Brasil encarcera essa população, que não necessariamente é a população mais envolvida no varejo e no consumo dessas substâncias. Por isso, 10 anos após a aprovação da Lei, em 2006, o número de pessoas presas no país havia crescido mais de 80% e, hoje, somos o terceiro país que mais encarcera pessoas no mundo. Entre elas, 74% são negras e 45% não concluíram o ensino fundamental [Infopen, 2017]. Além disso, existe uma morosidade muito grande no julgamento desses crimes e essas pessoas ficam presas, sem condenação legal. Então, especialmente a partir da Lei de Drogas, a gente seguiu encarcerando em massa a juventude preta e periférica do país, por causa de crimes relacionados ao consumo de substâncias, enquanto criminaliza a pobreza dentro das favelas.
D: O Estado brasileiro, sob o comando de diferentes gestões, defende há tempos a “guerra às drogas” como política de combate ao tráfico. O que você pensa sobre isso?
NW: Não existe guerra contra uma substância, né?! Na verdade, a guerra que é feita, o combate e os esforços com os quais o Estado brasileiro se engaja, assim como acontece em muitos outros países do mundo, são direcionados a pessoas. E a gente vê que essa política de combate às pessoas, e não às drogas, ela tem nome, ela tem endereço e ela tem cor, no Brasil.
O proibicionismo já se mostrou exitosa em algum momento da história nacional ou mesmo mundial?
NW: Primeiramente, precisamos lembrar, e isso não é uma opinião pessoal minha, como pesquisadora, ou de um determinado grupo político ideológico, mas sabemos, com base em evidências científicas, no que a literatura já produziu, tanto no campo das ciências exatas, quanto no campo da economia, da filosofia, sociologia, psicologia e medicina, que não existe êxito em tentar proibir as pessoas de consumir substâncias psicoativas. Desde que a humanidade existe, as substâncias que alteram o nosso estado de consciência são consumidas de forma orgânica nas sociedades, fossem elas ilegais ou legais. Isso porque as pessoas têm apreço por alterar o estado de consciência, seja para obter mais prazer, seja para aliviar a dor ou algumas sensações negativas, seja para desestressar ou para melhorar sua performance, é comum que as pessoas tenham apreço por fazer isso. Veja o caso do álcool e do tabaco, por exemplo. Diante disso, há outros fatores que precisamos considerar nesta análise.
D: Quais?
NW: Se pegarmos os últimos relatórios mundiais sobre álcool e drogas ilícitas da Organização Mundial da Saúde, por exemplo, vemos que a quantidade de pessoas que desenvolvem um problema relacionado ao consumo de álcool é muito maior do que a quantidade de pessoas com problemas gerados pelo uso de drogas ilegais. Essas evidências mostram ainda que apenas 13% das pessoas que consomem substâncias psicoativas ilegais de forma regular desenvolvem um problema relacionado ao seu uso. Ou seja, 87% delas não. Então, acaba que a gente tem uma política de Estado no Brasil e mundo afora que é focada nessa minoria. Só que os impactos dessa política abrangem a sociedade como um todo, principalmente a população mais vulnerabilizada. Então, na verdade, o fato de uma substância ser legal ou ilegal não impede o desenvolvimento de um problema relacionado ao seu uso. Essa é uma problemática muito mais complexa que envolve o mercado, ou seja, envolve quem são essas pessoas que estão consumindo, quanto de lucro elas dão a esse mercado, por que elas estão consumindo, se essas pessoas estão sendo criminalizadas ou se elas têm acesso aos serviços de saúde, se existe alguma política de prevenção, de educação… Enfim, é um problema mais complexo do que simplesmente proibir ou legalizar.
D: No que, então, se baseia a política de drogas no Brasil?
NW: Na realidade, o Estado brasileiro vem se posicionando às cegas em relação à política nacional de controle do uso de substâncias psicoativas. E eu acho que isso é muito importante dizer porque, para se fazer uma política pública que seja eficaz para uma determinada realidade, para um contexto específico, é preciso que a gente saiba qual o perfil de consumo dessas substâncias naquele determinado lugar, seja um país, seja um microterritório, um município ou em qualquer local onde vive um grupo populacional. Se a gente não faz isso, estamos sujeitos a desenvolver políticas públicas que não necessariamente correspondem à realidade de consumo daquele lugar. No caso do Brasil, diferente de outros países desenvolvidos e em desenvolvimento, não tratamos como prioridade o levantamento de um perfil epidemiológico para conhecer os dados de consumo da população. Muito pouco sabemos, por exemplo, quais substâncias as pessoas estão consumindo e quais as percepções que a sociedade tem em relação ao consumo. O Brasil só fez três grandes levantamentos nacionais, em 2001, 2005 e 2016, sendo esse último vetado pelo governo federal em 2019, com base em argumentos bastante questionáveis. Isso mostra que o nosso Estado investe muito menos em prevenção, em educação e informação sobre quais os riscos envolvidos no uso daquela substância, muito menos do que ele deveria investir. Enquanto isso, os governos concentram seus investimentos para quando a pessoa já está no auge do consumo problemático, ou seja, num estágio muito mais grave ou quando é presa por consumir ilegalmente ou por traficar a substância. Então, praticamente toda vontade política é voltada para o fim da cadeia e não ao início dela. E isso é uma questão também porque afasta a maioria das pessoas que querem ou necessitam buscar um cuidado em saúde relacionado ao uso problemático da substância, mas sabem que poderão ser estigmatizadas e até punidas por esse uso.
D: Quais são os serviços públicos de saúde oferecidos a essa população no país?
NW: Embora o Brasil ainda se situe num campo político institucional criminalizador e punitivista em relação aos usuários e traficantes de substâncias, nós temos o SUS, uma conquista social histórica que resultou num sistema público de saúde muito robusto e com muita capilaridade, que chega a todos os lugares do Brasil. No caso do cuidado a pessoas que fazem uso problemático de substâncias psicoativas, temos como serviços centrais os CAPS AD [Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas]. Esse é um serviço que abrange desde o cuidado daquela pessoa que quer retirar insumos para poder consumir a substância de uma forma mais segura, até pessoas que querem tratar, ficar totalmente abstêmias e, por isso, precisam frequentar o serviço diariamente, passar por atendimento médico, por atendimento psicossocial, frequentar oficinas, grupos terapêuticos, oficinas geradoras de renda. Então, o CAPS articula o cuidado em todos os níveis de complexidade que o problema do uso de substâncias pode gerar, dentro do território onde aquela pessoa reside ou se identifica.
D: Como se dá, na prática, esse cuidado ofertado no CAPS?
NW: O CAPS oferece um acolhimento integral gratuito aos seus usuários, bem como a oferta de diversos dispositivos de tratamento, de terapia, de terapia ocupacional, oficinas, remédios, tudo gratuito. Além disso, suas equipes não só esperam que o usuário chegue ao serviço como elas também vão até o território onde o sujeito vive. Se a pessoa, por exemplo, não chega ao serviço para ser atendida, mas está consumindo de uma forma desenfreada ou muito prejudicial para a própria vida ou pra quem está no entorno dela, o CAPS também vai ao encontro desse usuário, trabalhando dentro do território no qual aquela pessoa pertence. Diferente do que ocorre hoje em instituições de modelo asilar mantidas com dinheiro público, como muitos hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas, os CAPS se baseiam na prerrogativa de que seus usuários não precisam ser retirados do lugar onde estão para estarem em tratamento.
D: Por que?
NW: A lógica psicossocial desses dispositivos entendem que, se você retira involuntariamente, ou por vezes voluntariamente, uma pessoa do local onde ela vive e a isola daquele contexto, ela pode até parar de usar a droga naquele momento, mas, quando ela voltar, todos os problemas, todas as idiossincrasias, todos os conflitos que podem ter influenciado no padrão de consumo dela podem voltar. Então, o CAPS entende que é preciso chegar até o usuário e estar com ele onde ele vive, habitando junto com ele aquele cenário que pode estar influenciando na forma como ele vai consumir. Além de chegar até o usuário e de ofertar uma multiplicidade de tratamentos e serviços com equipes multiprofissionais, o CAPS também trabalha pela prevenção, pela educação e pelo acolhimento no entorno social daquele usuário. Então, as famílias também têm acesso e participação nos CAPS. Por isso, são serviços que oferecem um tratamento de base comunitária, essencialmente.
D: Em 2019, o governo Bolsonaro aprovou por decreto uma nova Política Nacional sobre Drogas e, no mesmo ano, realizou alterações na Lei de Drogas. O que mudou no país desde então?
NW – Nos últimos anos, o investimento público destinado à política nacional de drogas sofreu um claro desvio. Desde 2016 e, principalmente, a partir da gestão Bolsonaro, o dinheiro público destinado à Política de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas passou a ser priorizado para serviços que são, por excelência, segregatórios. Serviços que nos últimos anos receberam financiamentos recordes, como os hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas, que retiram a pessoa de dentro do contexto onde ela está e a isolam dentro desses dispositivos. Além disso, são instituições frequentemente denunciadas por práticas de maus tratos e tortura, como mostratam os últimos relatórios da Inspeção Nacional [em CTs e Hospitais Psiquiátricos, de 2019]. Ou seja, esse processo de segregação e privação da liberdade, não só viola direitos humanos, como também o isolamento das pessoas que fazem uso problemático de álcool e outras drogas não se mostrou ser mais eficaz do que os serviços de base comunitária que mantém o sujeito dentro do contexto social dele, como os CAPS. Por isso, atualmente, enquanto o governo prioriza recursos públicos para esse tipo de instituição, geralmente administrada por entidades privadas, há um sucateamento e um desinvestimento de serviços eficazes alinhados à lógica psicossocial do SUS e que já não eram implementados suficientemente, em termos quantitativos e de acordo com a lei, da forma como eles deveriam ser, apesar do seu significativo crescimento e impacto nos últimos dez anos.