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A utilização dos manicômios como instrumentos de repressão e mercantilização durante a ditadura militar brasileira
Por que décadas depois da Ditadura Militar, a lógica manicomial ainda é usada como aparato de punição?
5 de abril de 2024
Durante a Ditadura Militar brasileira, que se estendeu de 1964 a 1985, o Estado não hesitou em utilizar instituições psiquiátricas como ferramentas de opressão, tortura e até mesmo de ocultação dos rastros de seus opositores. Os presos políticos, nesse período, enfrentaram uma série de horrores dentro dessas instituições.
Submetidos a violências desumanas, como a eletroconvulsoterapia e o uso de medicamentos à base de escopolamina, também conhecidos como “Soro da Verdade”, eles eram forçados a suportar uma série de torturas dentro desses espaços. Essas práticas, disfarçadas de tratamento terapêutico eram, na verdade, formas de punição.
Investigações realizadas pela Comissão Estadual da Verdade, no Rio de Janeiro, revelaram que o Hospital Central do Exército foi cenário de inúmeras atrocidades contra aqueles que se opunham ao regime militar. Além das sessões de tortura, o hospital era usado para encobrir as verdadeiras circunstâncias das mortes dos presos políticos, muitas vezes fabricando laudos falsos.
O horror não se limitava apenas aos hospitais militares. Em alguns casos, os próprios torturadores estavam inseridos no corpo clínico, como no caso do coronel-médico do exército Carlos Victor Mondaine Maia, conhecido como “Dr. José”, responsável por liderar equipes de tortura.
Denúncias também apontaram para a ocultação de documentos, superlotação, condições insalubres e indivíduos submetidos a castigos físicos e químicos. Muitos eram internados cronicamente, passando o resto de suas vidas em manicômios.
No Complexo do Juquery, por exemplo, um levantamento interno revelou mais de 12 mil óbitos entre 1965 e 1989, muitos com paradeiro desconhecido. Incêndios que atingiram parte dos arquivos do hospital tornaram a investigação ainda mais complexa.
Alguns corpos foram enterrados no próprio Juquery, enquanto outros foram encontrados em valas clandestinas, como a de Perus, no Cemitério Dom Bosco, destinada a populações tidas como indigentes. Em investigações recentes, ossadas de desaparecidos políticos foram descobertas.
Analogamente, o regime ditatorial também foi responsável pela mercantilização da saúde mental. Embora sejam lembradas as construções estatais desse período, as iniciativas privadas também foram fortalecidas, especialmente no campo da psiquiatria. Isso se evidenciou pelo aumento significativo no número de leitos psiquiátricos e internações, parte do projeto político que visava consolidar o poder.
Ainda que o golpe militar estivesse alinhado politicamente com o capital estrangeiro, por meio de políticas de privatização, o Estado brasileiro iniciou uma série de repressões com uma agenda centralizadora, justificando suas ações em nome da segurança nacional e de uma suposta “ameaça comunista”.
Essa ambiguidade entre a centralização política e as ações de privatização foi observada nas políticas de saúde da época, o que refletiu na criação do INAMPS (Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social), que unificava sistemas de pensões, aposentadorias e assistência médica, estabelecendo convênios com instituições públicas e privadas.
Esse novo modelo previdenciário teve um grande impacto na psiquiatria, beneficiando a indústria farmacêutica e aumentando a demanda por internações. O governo oferecia subsídios financeiros que, aliados ao aumento das institucionalizações, resultaram em uma deterioração dos leitos psiquiátricos públicos. Como consequência, a Previdência Social direcionava 97% de seus recursos para a manutenção de leitos privados, aumentando sua oferta e o número de internos.
Em 1984, o psiquiatra Luiz Cerqueira evidenciou o termo “indústria da loucura” em seu livro “Psiquiatria Social: Problemas Brasileiros de Saúde Mental”, denunciando a prática mercantilista que se instaurou nesse período da história brasileira.
Este ano, o golpe militar completa 60 anos e, apesar dos progressos iniciados pela Reforma Psiquiátrica, as cicatrizes deixadas pela ditadura ainda se refletem nas políticas de saúde mental do país. A mercantilização da saúde continua ocorrendo mediante o financiamento de comunidades terapêuticas (CTs), do fortalecimento da indústria farmacêutica e da deterioração da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).
Assim como durante a Ditadura Militar, o Estado, aliado a organizações privadas, transformou a saúde mental em mercadoria, seis décadas depois algumas instituições ainda lucram com o sofrimento psíquico da população.
Além disso, mesmo após tantos anos desde o fim do período ditatorial e a implementação da Reforma Psiquiátrica, frequentemente surgem denúncias relacionadas à punição de indivíduos em sofrimento psíquico, sobretudo em comunidades terapêuticas.
Então, a pergunta que permanece é: por que, décadas após a Ditadura Militar, a lógica manicomial ainda persiste como um instrumento de punição?
UOL: Da tortura à loucura: ditadura internou 24 presos políticos em manicômios… – Veja mais em https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2021/06/14/ditadura-militar-presos-politicos-internacao-manicomios.htm?cmpid=copiaecola
GUEDES, Alexandre Maciel. Violência manicomial: a psiquiatria na repressão durante a ditadura-civil militar brasileira. Orientador: Samantha Viz Quadrat. 2019. 150 f. Dissertação de mestrado (Pós-graduação em História) – Universidade Federal Fluminense – UFF, Niterói, 2019. Disponível em: https://www.historia.uff.br/stricto/td/2325.pdf. Acesso em: 19 mar. 2024.