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Governo federal é questionado na Corte Interamericana por descumprimento de sentença do caso “Ximenes Lopes vs Brasil”

Passados 15 anos da primeira condenação da OEA contra o Estado brasileiro por violações de direitos humanos, organizações civis denunciam desmonte de políticas de saúde mental no país durante audiência internacional

Governo federal é questionado na Corte Interamericana por descumprimento de sentença do caso “Ximenes Lopes vs Brasil”
#ParaTodosVerem: Imagem com as telas dos participantes da audiência pública da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o caso "Ximenes Lopes vs. Brasil", realizada virtualmente.

23 de abril de 2021

Por Manuela Rached Pereira

O descumprimento pelo Estado brasileiro da sentença do caso “Ximenes Lopes Vs. Brasil”, foi tema de uma audiência pública da Corte Interamericana de Direitos Humanos, realizada na última sexta-feira (23).  A busca por justiça da família do jovem Damião Ximenes Lopes, torturado e morto em uma clínica psiquiátrica conveniada ao SUS, no município de Sobral (Ceará), em outubro de 1999, resultou na primeira condenação do Brasil por graves violações de direitos humanos pela Organização dos Estados Americanos (OEA), em 2006.

Passados 15 anos do julgamento na Corte, o Estado brasileiro ainda não cumpriu todas as resoluções da sentença condenatória e o atual governo federal – alvo frequente de críticas e denúncias envolvendo o desmonte de políticas públicas de saúde mental nos últimos anos – foi convocado a prestar esclarecimentos diante de juízes da Corte, a pedido da organização Justiça Global.

Em sua decisão proferida em 2006, a Corte Interamericana determinou que, além de reparação à família de Ximenes Lopes, o Estado brasileiro implementasse um programa de formação voltado a trabalhadores de saúde mental. A capacitação deve ter como eixo central os princípios de direitos humanos que devem reger o tratamento voltado a pessoas em sofrimento psíquico ou com transtorno mental, conforme preveem as recomendações internacionais dispostas na sentença e a própria Lei da Reforma Psiquiátrica, aprovada no Brasil em 2001, a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência e a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI).

Conforme relatado pelos representantes das vítimas durante a audiência, além de não cumprida a referida resolução, o governo federal tem intensificado, nos quatro últimos anos, processos de desmonte de políticas públicas de saúde mental, por meio de decretos e normativas que fortalecem a atuação de comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos no país, em detrimento dos serviços de base comunitária do SUS.

“Se a ausência de cursos de formação em direitos humanos aos profissionais que atuam com saúde mental já era problemática no contexto da desinstitucionalização, torna-se ainda mais grave em um momento em que a internação volta a ser a política prioritária do Estado para o cuidado em saúde mental, com os hospitais psiquiátricos na centralidade da atenção psicossocial, com a ampliação do investimento público destinado a comunidades terapêuticas e a precarização da rede de serviços territoriais e comunitários”, afirmou a advogada Raphaela Lopes, da Justiça Global.

Entre os demais representantes das vítimas que participaram da audiência, estava o diretor executivo do Desinstitute, Lúcio Costa, perito e um dos representantes do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura na ocasião. De acordo com ele, que atuou na coordenação da última inspeção nacional em hospitais psiquiátricos no Brasil, foram vistoriados, no final de 2018, 40 hospitais psiquiátricos em 17 estados das cinco regiões do país, onde a situação encontrada na maioria das instituições era de “barbárie”.

Ainda segundo Costa, a última inspeção realizada pelo governo federal em hospitais psiquiátricos ocorreu em 2014. “Desde então, o Ministério da Saúde desconhece o funcionamento dessas instituições no Brasil. Mas, contraditoriamente, em 2017, anunciou o aumento de financiamento público aos hospitais psiquiátricos a partir de uma portaria que, sem discussão nenhuma com a sociedade civil e com o Conselho Nacional de Saúde, fortalece instituições que mataram e continuam matando pessoas”.

Assista à fala de Lúcio Costa:

Uma das representantes do Estado brasileiro presentes na audiência foi Aline Albuquerque, consultora jurídica do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. De acordo com ela, o governo federal pretende implementar um programa permanente em saúde mental, “que visa, inicialmente, capacitar profissionais que atuam em hospitais psiquiátricos para que prevejam cuidados em saúde, de acordo com os princípios e normas de direito internacional de direitos humanos”.

Após a fala de Albuquerque, o advogado da Justiça Global Eduardo Baker solicitou um detalhamento aos representantes do Executivo federal sobre a implementação da capacitação mencionada, “considerando que havia sido informado pelo Estado em 2015 e, posteriormente reiterado em 2017, que o referido programa seria realizado naquela época”.

“Também gostaríamos de saber quais garantias estão sendo implementadas para que tal programa de fato se torne uma ação permanente e incorporada pelo Ministério da Saúde, e não apenas uma iniciativa pontual realizada pelo Estado, para que o cumprimento da sentença seja de fato efetivado”, concluiu Baker.

Na avaliação de Leonardo Pinho, presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME), o Brasil vive hoje um processo regressivo no campo, que remonta às condições de violações que geraram a morte de Damião Ximenes.  “Hoje, temos um conjunto de decretos e portarias que versam sobre processos de institucionalização, por meio do financiamento de leitos privados em hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas. Ou seja, o Brasil volta a ter uma política focada no isolamento e na exclusão social”, afirmou Pinho, durante a audiência.

Também presentes na ocasião, os representantes do Conselho Nacional de Justiça afirmaram que o órgão se dispõe a assumir um compromisso de diálogo com representantes da sociedade civil e do Estado, a fim de garantir o cumprimento das reparações impostas pela sentença da Corte no caso. “Penso que o Conselho tem total condição de contribuir com esse processo, especialmente na parte de capacitação e monitoramento no âmbito do judiciário, em relação a quais são as melhores práticas relacionadas ao tema”, disse o secretário-geral do CNJ, Valter Shuenquener.

“O que a gente observa é que, se falta assistência à saúde, quem dirá assistência jurídica às pessoas que se encontram internadas involuntariamente ou por medida de segurança”, avaliou o perito do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, Daniel Melo. Por isso, concluiu, “é fundamental que órgãos como o próprio CNJ e a Procuradoria Geral da República possam se somar nesses espaços de fiscalização tendo em vista que essas violações são generalizadas em todo o Brasil e há tempos não estão sendo monitoradas pelo Estado”.

Ao final da audiência, a consultora do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Aline Albuquerque, reiterou o compromisso do Estado brasileiro com a efetivação do programa de formação proposto e afirmou que “compete ao poder executivo federal a coordenação do cumprimento da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos”.

Assista abaixo à gravação da audiência pública na íntegra:

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