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Aurélia Rios é libertação
Diretora de Interseccionalidade do Desinstitute, Aurélia Rios faz de sua vida uma luta constante contra as garras do racismo estrutural nos manicômios e em outros espaços que perpetuam a opressão na sociedade brasileira
14 de maio de 2022
“A liberdade é uma luta constante”, invoca sempre Angela Davis. A psicóloga e diretora de Interseccionalidade do Desinstitute, Aurélia Rios, dá vida a esse lema em cada passo de sua trajetória. Ela carrega consigo quatro séculos de luta:
“A data de 14 de maio é um dia em que nós da população negra seguimos com o enfrentamento, porque a nossa população nunca foi passiva. Nunca fomos uma voz submissa, subserviente. A prova disso é que eu estou aqui. Se estou aqui, é porque as minhas mais velhas e os meus mais velhos lutaram para que a minha existência fosse possível”.
Quando falamos de libertação do povo negro, estamos falando de quatro séculos de herança escravocrata. Essa herança está viva e continua conformando o capitalismo brutal desenvolvido em sociedades de origem colonial, como a brasileira. Fomos o último país a abolir a escravidão nas Américas. Quase sem anos depois da primeira revolução negra ocorrida no Haiti em 1793.
“É uma luta de mais de quatro séculos, nós não podemos falar que tudo começou em maio de 1888”, ensina Aurélia Rios.
Essa luta secular travada por negros e negras não foi uma luta de debates. Foi de guerra: “Pensar no dia 14 de maio não é só pensar na abolição, mas na luta do povo negro, na luta constante para que os nossos direitos sejam efetivos. Para que o Estado de direito seja legitimado e institucionalizado. Nós não podemos mais viver em uma sociedade negacionista. Cada vez mais as políticas de reparação histórica, como as ações afirmativas, correm risco de serem desmontadas”, denuncia. Apesar dos séculos de genocídio e escravização, o povo negro, assim como os povos indígenas, segue na luta por reparação.
Uma história de luta
Aurélia nasceu em uma família de militantes. Em casa, circulavam as ideias dos grandes intelectuais do movimento negro Lélia González e Abdias Nascimento. “O meu saudoso pai era meio Malcolm X. Tinha esse perfil de fazer o enfrentamento e arrebentar paradigmas. Ele ensinava que quando nós somos minoria, precisamos ocupar os espaços e marcar nossa presença”, recorda Aurélia Rios.
Ela fomenta uma postura profundamente antirracista: “Cada linha que nós lemos, temos que questionar para, a partir daí, efetivar o enfrentamento. Quando me perguntam se é difícil ser negra nesse país? Acima de qualquer contexto, tenho orgulho de ser mulher negra, até porque o racismo é um problema da branquitude”.
Aurélia sempre quis ser psicóloga, no entanto, na época em que terminava o Ensino Médio, não havia ações afirmativas. Então, concluiu uma parte do curso de Ciências Sociais, foi professora de todas as disciplinas das humanidades, assumiu cargos de gestão na Saúde Pública e, anos depois, realizou uma transição de carreira, retornando à universidade para estudar psicologia. Posteriormente, titulou-se mestre em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Então, os caminhos da vida levaram Aurélia à maior favela de palafitas da América Latina, localizada em Santos. Entretanto, foi lá, como psicóloga social-comunitária, onde desenvolveu uma das mais contundentes atuações de sua vida.
Em seu trabalho, começou a questionar uma perspectiva de saúde biologizante em relação às pessoas nos territórios de periferia. Buscou problematizar a loucura pelo viés socioecômico brasileiro, incluindo, evidentemente, o racismo e o machismo. Percebeu que o diagnóstico que ignorava as desigualdades e os contextos mais amplos levava à segregação de pessoas e à violação de direitos, causando ainda mais sofrimento.
Durante a entrevista, quando perguntada sobre processos de patologização ancorados em parâmetros racistas, Aurélia recorda de um caso que lhe marcou:
“Uma vez eu recebi um telefonema de uma pessoa e ela pediu para que eu fosse até a UPA: ‘Aurélia como eu sei do seu trabalho, eu tenho certeza de que você vai ajudar a minha vizinha. Ela não é louca, mas a amarraram’”. Quando Aurélia chegou, de fato, encontrou a mulher amarrada e conversou com ela. Ela estava sendo diagnosticada com delírio psicótico.
“E eu fiz a seguinte pergunta para a médica de plantão, que era uma mulher não-negra: ‘Você sabia que essa pessoa está há mais de 24 horas sem um prato de comida?’”, conta. Aurélia então chamou a doutora para a realidade: “‘você já parou para pensar que o delírio dela é a fome?’”. A médica ainda teria tentado se justificar: “mas ela não disse nada…”. Ao que Aurélia respondeu: “Você ao menos perguntou?”.
Ao ser perguntada sobre a existência de uma continuidade entre navio negreiro, senzala e manicômio, Aurélia Rios responde:
“Essas ligações são os tentáculos do racismo estrutural, que parte do sistema escravocrata, é enredado no capitalismo e no patriarcado e segue criando na sociedade uma série de dispositivos que o reproduzem”.
É o caso do sistema carcerário e dos hospitais psiquiátricos que enclausura de forma absolutamente desproporcional jovens negros: “O meu povo é um povo contrário à lei? Não, é o racismo que está na raiz do encarceramento. Quem detém a hegemonia do sistema? Qual a cor dos juízes desse país? Pensando nos manicômios, qual é a cor predominante dos psiquiatras, que atestam, certificam, diagnosticam o povo negro?”, questiona.
Entretanto, Aurélia não gosta de se referir às favelas com as senzalas de hoje, porque “dentro de uma comunidade há muitos quilombos presentes”.
Interseccionalidade
Ao longo de sua trajetória acadêmica, Aurélia Rios, em contato com autores e autoras decoloniais e antirracistas da diáspora africana, como Frantz Fanon, Grada Kilomba, Achille Mbembe e Patricia Hill Collins, foi ampliando seu conhecimento sobre a colonialidade e todas as relações de poder que enredam o tecido social brasileiro e de outras formações sociais no chamado Sul Global.
Nos dias de hoje, ao planejar seu doutorado, Aurélia revela um desejo: “Desejo contribuir inclusive com o currículo da Psicologia, porque, ao longo da formação acadêmica, o sofrimento psíquico causado pelo racismo não é abordado com os recursos teóricos necessários para encará-lo de forma crítica”.
A partir da perspectiva interseccional, Aurélia Rios, comandando a Diretoria de Interseccionalidade do Desinstitute, debate os modos como a luta antimanicomial repercute nas populações estruturalmente atravessadas por opressões de raça, classe e gênero, reconhecendo a interconexão histórica entre essas dimensões. No Brasil, pessoas racializadas, como pessoas negras e indígenas, trabalhadoras precarizadas, mulheres e LGBTQIA+ são impactadas de modos particulares pelas políticas de saúde mental de caráter segregacionista.
Ao longo da história das políticas sob a lógica manicomial no Brasil, foram essas populações – muitas vezes vivenciando de forma simultânea condições de vulnerabilidade social – que tiveram seus direitos humanos mais fortemente atacados por instituições estatais e privadas. Em nossa sociedade, dominada por estruturas hierárquicas racistas, heteronormativas, cisgêneras, classistas e patriarcais, é fundamental reconhecer que as pessoas não são classificadas de forma homogênea entre as categorias binárias da normalidade e da anormalidade.
Um exemplo é a história assombradora de um dos maiores escritores do Brasil. Nascido em 13 de maio de 1881, sete anos antes da proclamação da Lei Áurea, Lima Barreto foi internado à força em um manicômio por duas vezes. A última internação deu-se pouco antes de sua morte. No diário, escreveu sobre a violência com a qual o Estado submetia os internos, quase todos negros. A experiência resultou na autoficção de confinamento O cemitério dos vivos, referência para uma luta antimanicomial que deve ser sempre antirracista ou não será. O livro foi publicado postumamente em 1953. Infelizmente, como muitos intelectuais e artistas negros, sua obra, repleta de críticas contundentes aos problemas nacionais, só foi reconhecida postumamente.
Aurélia entende que a abordagem política, teórica e metodológica da interseccionalidade – enquanto um legado fundamental da crítica promovida pelo feminismo negro – possui enorme capacidade de contribuir com as interpretações e enfrentamentos encampados pelo movimento antimanicomial, justamente por superar as limitações de perspectivas unidimensionais. As pessoas usuárias dos serviços de saúde mental não são subjetividades abstratas, na verdade, possuem raça, gênero, classe social e tantos outros atributos que as tornam seres sociais concretos que devem ter seus direitos plenamente reconhecidos, garantidos e respeitados.