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Conversa Livre: Rachel Gouveia convoca o movimento a incorporar radicalmente a luta antirracista à Reforma Psiquiátrica

Entrevistada para o Conversa Livre,  a professora, pesquisadora e militante Rachel Gouveia abordou – desde a perspectiva interseccional – a atual conjuntura de “remanicomialização” e as perspectivas para a luta antimanicomial e antirracista 

#ParaTodesVerem: retrato de Rachel Gouveia, ao fundo uma biblioteca. Ela veste uma camisa preta com os escritos estampados: ANTIMANICOMIAL. feminista, decolonial, antirracista, anticapitalista, anticapacitista, antiproibicionista e abolicionista penal. Crédito: Arquivo pessoal/Rachel Gouveia
#ParaTodesVerem: retrato de Rachel Gouveia, ao fundo uma biblioteca. Ela veste uma camisa preta com os escritos estampados: ANTIMANICOMIAL. feminista, decolonial, antirracista, anticapitalista, anticapacitista, antiproibicionista e abolicionista penal. Crédito: Arquivo pessoal/Rachel Gouveia

6 de maio de 2022

Por desinstitute

Em entrevista ao Desinstitute, a professora, pesquisadora e militante Rachel Gouveia destrincha – sempre partindo de uma perspectiva interseccional – a atual conjuntura de “remanicomialização” da vida dirigida pelo bolsonarismo, as perspectivas para a luta e o sofrimento de mulheres negras, além de abordar o cuidado em liberdade e a divisão social, sexual e racial do trabalho nas políticas de saúde mental.

Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Rachel Gouveia é professora do Departamento de Métodos e Técnicas da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e pós-doutoranda em Direito na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). De forma conjunta, é integrante da Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME) e militante do Movimento Nacional de Luta Antimanicomial (MNLA).

A entrevista está organizada em três eixos temáticos. No primeiro, Rachel Gouveia faz uma “>análise da conjuntura de retrocessos a partir da perspectiva interseccional. No segundo, responde perguntas sobre a incorporação radical da luta antirracista na Reforma Psiquiátrica e em relação à divisão social, racial e sexual no trabalho de cuidado. No último bloco, a entrevistada aborda o sofrimento das mulheres negras infligido pelo racismo estrutural.

Em tributo ao Dia da Luta Antimanicomial, celebrado no dia 18 de maio, o Desinstitute publicará, nas próximas semanas, entrevistas sobre saúde mental e liberdade desde diferentes perspectivas de atuação.

Para compor o Especial Conversa Livre, o Desinstitute entrevistou militantes do campo, intelectuais e gestores da área, abordando temas complexos, como ataques às conquistas da Reforma Psiquiátrica, trabalho de base em movimentos antimanicomiais, protagonismo das pessoas usuárias na luta, experiências transformadoras de cuidado em liberdade, racismo estrutural e interseccionalidade no campo da saúde mental.

“Remanicomialização” e bolsonarismo: análise dos retrocessos desde a perspectiva interseccional

Desinstitute – O proibicionismo, o punitivismo e a guerra às drogas elegem como inimigo interno número um os jovens negros. Possivelmente, como desdobramento, o projeto conservador vem priorizando cada vez mais a comunidade terapêutica como centro das políticas de saúde mental. Seria apropriado afirmar que as comunidades terapêuticas agravam o racismo estrutural?

Rachel Gouveia – As comunidades terapêuticas fazem parte de uma das estratégias institucionais de contenção de corpos considerados desviantes, perigosos. Isso também perpassa como mecanismo de opressão do racismo estrutural, e de todas as suas múltiplas manifestações, entre elas o racismo institucional. Eu queria fazer uma localização antes de entrar especificamente no tema das Comunidades Terapêuticas.

A guerra às drogas, assim como a comunidade terapêutica, entra como parte de uma estratégia de propagação de controle dos corpos desviantes, categoria na qual podemos identificar negros, favelados, população LGBTQIA+, pessoas com deficiência etc. Penso que é fundamental a ampliação deste leque já que eu estou partindo da interseccionalidade, e aqui não entendendo as opressões de maneira hierarquizada, mas imbricadas.

Podemos utilizar a noção de nó de Elieth Saffioti: as opressões estão enodadas. Então, sem entrar numa hierarquização das opressões, mas ressalvando que em determinados momentos há um afrouxamento para determinada opressão: podemos destacar o racismo enquanto a opressão que é base estruturante e estrutural do aparato manicomial brasileiro, que interna majoritariamente corpos negros, como Lima Barreto denuncia em Cemitério dos Vivos. É essa população que sempre esteve e ainda está nos hospitais psiquiátricos, nas prisões e nas instituições de medida socioeducativa. 

Por um lado, isso tenta se justificar pela periculosidade, e, por outro, pela noção de doença mental.

Assim, temos identidades, corpos, sujeitos considerados doentes a partir da sua existência, existência essa que é inversa à noção de homem universal assentada em uma visão racista, misógina, patriarcal, cis-heteronormativa, europeia, burguesa, capacitista. Sob essa lógica, os corpos e identidades que são o avesso desse “homem universal” precisam ser controlados.

Para tanto, a sociedade moderna cria algumas instituições, entre elas o aparato manicomial. No caso brasileiro, esse aparato manicomial também caminha lado a lado com as instituições da Justiça, as prisões e as instituições de medida socioeducativa.

Desinstitute – Em alguns de seus artigos, você afirma que a Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e Drogas tem sido atravessada por um processo de (re)manicomialização, que ameaça as transformações conquistadas pela Reforma Psiquiátrica brasileira. Os pacotes de retrocessos impostos pelo atual governo federal possuem um caráter inédito?

Rachel Gouveia – Segundo a leitura que eu venho fazendo da conjuntura, hoje no campo da saúde mental há dois projetos conservadores. Um deles é o da psiquiatria tradicional, centralizada nas organizações médicas, na defesa do saber e do poder médico, na centralidade das internações e dos leitos psiquiátricos. E há uma outra vertente que é a da defesa das comunidades terapêuticas. Particularmente, eu entendo que são diferentes, mas dialogam entre si. São estratégias distintas, é muito importante essa distinção, porque nem todas as comunidades terapêuticas vão adotar a presença de profissionais da saúde mental. Na verdade, vão trabalhar com uma perspectiva hegemonicamente religiosa, punitivista, proibicionista, de violação de direitos humanos, utilizando a violência enquanto estratégia de correção. Inclusive, a própria “cura gay”, que é uma perspectiva centrada em um essencialismo biologizante com relação à noção de homem e de mulher.

No governo Bolsonaro, ambas as perspectivas ganham força. A política Nacional de Saúde Mental, desde 2016, tem na gestão psiquiatras conservadores que vão defender a perspectiva da centralidade médica e do hospital psiquiátrico. Ao mesmo tempo, ganha força o movimento das comunidades terapêuticas, que estão disputando o interior da política. No geral, elas são direcionadas para a população mais periférica, pobre, favelada, que hegemonicamente é negra. Então, o quanto essas instituições servem para afirmar uma perspectiva da guerra às drogas que não é a guerra contra as drogas em si, porque o discurso é acabar com as drogas, mas o que acontece no cotidiano é a afirmação da destruição de determinada parcela da população brasileira, predominantemente negra e periférica. Combate-se as drogas consideradas proibidas e se oferta, enquanto forma de amenizar a intensificação do sofrimento dessa população, a medicalização.

O trecho em áudio pode ser conferido no Instagram do Desinstitute: 

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Desinstitute  Sobre o que você denomina como “remanicomialização da política de saúde mental” nessa conjuntura neoliberal e conservadora, como você, enquanto pesquisadora e militante, percebe a resistência a orientações políticas que visam o retorno da ênfase nas internações? O movimento antimanicomial estaria mais na resistência do que em outros momentos, nos quais protagonizou grandes transformações?

Rachel Gouveia – Eu gosto sempre de destacar que por mais que tenhamos avançado na construção da Reforma Psiquiátrica brasileira, sempre foi um campo em disputa. Sempre houve tensões, sempre houve disputas ali no interior da direção da política nacional de saúde mental, álcool e outras drogas. O movimento antimanicomial não é um só, não é apenas o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial (MNLA), ao qual eu faço parte. Nós temos o movimento da Rede Internúcleos da Luta Antimanicomial (Renila), temos coletivos, entidades, que também representam a luta antimanicomial no Brasil. É importante reconhecer a pluralidade da luta antimanicomial brasileira. Nós temos o caminho para a construção dos movimentos coletivos, e temos o caminho da institucionalidade, de disputa do aparelho estatal. Em alguns momentos isso se cruza, sujeitos que eram da base da luta antimanicomial ocupam espaços no poder público para poder disputar a direção da política.

Não dá para homogeneizar os sujeitos. Eu faço uma seguinte leitura: na construção desse processo temos: 1) Uma proposta que é baseada nos princípios da radicalidade antimanicomial e anticapitalista, retomando a Carta de Bauru de 1987, e nos princípios que conduzem a uma mudança no projeto de sociedade.  2) A outra proposta seria uma Reforma Psiquiátrica que coaduna, na verdade, que pactua com os interesses do grande capital e reafirma a todo custo uma reforma psiquiátrica que fica meramente em uma mudança legislativa e assistencial, sem disputar o projeto de sociedade como um todo. Em síntese, uma reforma que defende uma linha reformista e uma “reforma” psiquiátrica que seria revolucionária, ou seja, que convoca a radicalidade dos princípios antimanicomiais pensando classe, gênero, raça e sexualidade etc. Por fim, vejo que temos quatro grandes projetos disputando a política de saúde mental como um todo, dois disputando a reforma e dois em uma linha de contrarreforma e retrocesso.

Entre 1992 e 2015, houve uma certa conformação para a ocupação do espaço institucional e um esvaziamento da base dos movimentos sociais. A mudança de ministro da Saúde colocou em xeque essa hegemonia da direção. Perdeu-se a direção, então tudo aquilo que foi construído – e aqui não estou dizendo que não tenha conciliações no projeto – está em risco. Houve uma intensificação das forças conservadoras disputando o interior da própria política. Perto da transição entre o governo Lula e Dilma, ocorre uma pressão advinda do debate da guerra às drogas. Isso apareceu na eleição por meio da suposta “epidemia do crack”.

Desinstitute – Podemos, então, dizer que o que enfrentamos agora em termos de retrocessos e desmontes não é um raio em céu azul? É mais complexo, não?

Rachel Gouveia – Falo isso para a gente pincelar que não foi de repente. É um encadeamento que com o governo Bolsonaro se aprofunda. Desde janeiro de 2019, quando Bolsonaro toma posse, o ataque veio direto. O Ministério da Saúde lança logo uma nota técnica trazendo praticamente novos princípios para a direção da política nacional. Depois de mobilizações, a nota técnica foi tirada do ar. Mas é isso, com o governo Bolsonaro, a gestão já afirma: “Nós viemos para a defesa dos hospitais psiquiátricos, do eletrochoque, das comunidades terapêuticas, e a internação como a principal estratégia de gestão da saúde mental”. Em 2020 – e isso vem se intensificando – o governo Bolsonaro apresenta uma proposta de “revogaço” de praticamente cem legislações, portarias que dão subsídios à Reforma Psiquiátrica brasileira. Como resposta, houve a articulação nacional, estadual e municipal dos diferentes grupos e inclusive uma composição de uma frente em defesa da saúde mental, da reforma e da luta antimanicomial. Realizamos conferências populares, o que foi fundamental, enquanto uma estratégia de resistência e fortalecimento para mobilização das conferências municipais e estaduais, bem como, para a 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental neste ano de 2022. A última ocorreu em 2010! Como não há apoio do governo, a realização vai depender das mobilizações populares.

Então, o movimento como um todo vem de certa forma fortalecendo esses espaços democráticos de disputa, mas eu particularmente entendo que é necessário que a gente fortaleça as bases dos movimentos antimanicomiais. Não dá para caminhar sem as bases, seja no MNA ou na RENILA, por exemplo, ou outros coletivos que não estão filiados a esses movimentos históricos.

É fundamental também que estejam articulados com os movimentos negro, de mulheres negras, os múltiplos feminismo, com o movimento LGBTQIA+, com o movimento classista, sindical e operário. Não tem como defender a luta antimanicomial, a reforma psiquiátrica, sem essa articulação. Falar de sofrimento e adoecimento psíquico é também falar sobre a intensificação e a precarização do trabalho, o adoecimento no espaço de trabalho. É também falar do desemprego. É também falar do racismo, do feminicídio, da lesbofobia, da homofobia e da transfobia.

É importante fortalecermos os movimentos sociais e aqui falo muito de quem é localizada no Movimento Nacional da Luta Antimanicomial (MNLA), enquanto espaço coletivo organizado, mas também independente, no sentido de que tem um papel não só de pressionar o poder público, mas também de articular com outros movimentos e entidades que coadunam com os princípios da luta antimanicomial. Não vejo outro caminho senão o fortalecimento dos movimentos sociais no tempo presente. O Estado está em disputa, mas seu fundamento é racista, patriarcal e classista. E esse modelo de Estado reproduz os interesses da classe dominante. Há necessidade do fortalecimento dos coletivos e movimentos sociais para que se possa pressionar, não só para o avanço da política de saúde mental, mas também pela mudança do modelo econômico.

Incorporação radical da luta antirracista à Reforma Psiquiátrica a divisão social, racial e sexual do trabalho

Desinstitute – Como a Reforma Psiquiátrica pode ser radicalizada pela Luta Antimanicomial, no sentido de incorporar profundamente a Luta Antirracista, debate que você mesmas suscita em seus artigos?

Rachel Gouveia – Pergunto por que isso não foi uma questão se sempre nós, a população negra, que ocupamos os hospitais psiquiátricos. É como se houvesse uma homogeneização das experiências. É como se aqueles corpos ali fossem corpos meramente loucos. Temos que dar conta dessa questão. Adelina Gomes, a única mulher do ateliê de Nise da Silveira, foi uma mulher negra, retinta, pobre, que veio do interior e passou a vida internada no hospital psiquiátrico. Ela não deu conta de um término de relacionamento, matou um gato, foi internada e passou a vida dentro do hospital psiquiátrico. Estou trazendo esse exemplo, porque a Adelina é uma das mulheres que sempre estiveram no manicômio, justamente, por escaparem de comportamentos que eram destinados a mulheres negras. Por que que isso não se questionou devidamente?

E eu faço esta convocação não só por isso, a homogeinização das experiências, mas pela absorção de uma leitura eurocentrada, sem entendermos a particularidade da formação social brasileira, o racismo estrutural e suas manifestações. Quando Franco Basaglia vem ao Brasil, principalmente na colônia de Barbacena, ele compara o que viu ao holocausto nazista.

Não faço a crítica no sentido de comparar as estratégias de destruição, mas por que não fazemos a leitura da construção do aparato manicomial a partir da formação social brasileira no colonialismo, racismo, da herança escravocrata que se faz presente no nosso cotidiano?

Também aponto o apagamento da contribuição do pensamento de Frantz Fanon para pensar a reforma psiquiátrica brasileira. Lembrando que ele era um psiquiatra-psicanalista revolucionário e influenciou inclusive o pensamento de Franco Basaglia. Mas não só Fanon, como também de outros protagonistas negros e negras, como Ivone Lara, Virgínia Bicudo e Lélia González. O processo de silenciamento faz parte do próprio racismo estrutural. Quem é que ocupa, quem é que representa, quem é que pensa? Quem faz o trabalho de base?

Desinstitute – Em sua tese de doutorado, em Serviço Social (PUC-SP), intitulada “Trabalhadoras do care na saúde mental: contribuições marxianas para a profissionalização do cuidado feminino”, você apresenta e analisa dados de campo que mostram que o trabalho de cuidado – sustentáculo das políticas de saúde mental – é predominantemente desempenhado por mulheres negras, provenientes de camadas empobrecidas da classe trabalhadora. Você poderia explicar como isso se relaciona à divisão sexual e racial do trabalho e, ao mesmo tempo, à tendência de precarização e desvalorização desse trabalho essencial para a manutenção e reprodução da sociedade?

Rachel Gouveia – Na minha tese de doutorado, eu fui identificar o quanto que nos serviços residenciais terapêuticos há uma reprodução da essencialização, naturalização do trabalho das mulheres negras. Esse trabalho sustenta toda a Reforma Psiquiátrica, seja remunerado, nos dispositivos que atendem a desinstitucionalização e nas casas terapêuticas, ou gratuito no âmbito da família. Pensar uma divisão social, sexual e racial é isso. Quem são as técnicas de enfermagem e as cuidadoras? E, se a gente não matiza, a gente também reproduz a divisão social, racial e sexual do trabalho no nosso cotidiano.

Tanto as pessoas usuárias quanto as cuidadoras na ponta são racializadas e são as pessoas mais atingidas por políticas de austeridade numa conjuntura de neoliberalismo exacerbado.

A gente pode dizer também que a austeridade está implicada nesse racismo estrutural nas políticas de saúde mental. Quando você vai desmontando, precarizando, flexibilizando, terceirizando, as políticas de austeridade rebatem diretamente na população negra, porque ela está nos trabalhos subalternos, invisíveis e precários. Esse Estado que reduz a mão assistencial, aumenta a presença policial, entra mais com o braço penal do Estado e diretamente vai matar, encarcerar e medicalizar. Os homens negros são encarcerados, a juventude morta e as mulheres negras medicalizadas.

Violência, racismo estrutural e sofrimento das mulheres negras

Desinstitute – Sobre o tema racismo, violência e sofrimento das mulheres negras, com o incremento dos assassinatos policiais cometidos contra civis, sobretudo jovens negros, é possível pensar no impacto psíquico-social que a violência gera em mulheres negras? Nesse sentido, lembro aqui da luta pelo direito à maternidade de mulheres negras. Quais as respostas que têm sido oferecidas pelo poder público para lidar com esse sofrimento?

Rachel Gouveia – Tenho estudado exatamente sobre isso, inclusive fazendo pós-doutorado em Direito para pensar sobre essa violência armada, que não é restrita ao Estado. Mas pensando a violência propagada pelo Estado, tenho um artigo cujo título é: “O lixo vai falar numa boa”, que é uma frase da Lélia González. Ela explica que nós mulheres negras somos convocadas a reproduzir uma noção universal de ser mulher que é essencializada e naturalizada por atribuições consideradas femininas, o cuidado materno, o educar, e também características de fragilidade e sensibilidade. No entanto, essa construção do ser mulher é produto inclusive do colonialismo, como explica as feministas decoloniais. Para María Lugones, a construção do gênero é produto da colonialidade. Ela produz essa localização diferenciada entre homens e mulheres, partindo de homens e de mulheres brancos. Aqueles que não são brancos são considerados na zona do não ser. Eles não são sujeitos. São o outro, a outridade, que pode ser morta, estuprada, violentada e animalizada.

O que acontece com as mulheres negras já que não somos humanas, não somos mulheres? Pensamos aqui no senhor branco que aproveitava a ama de leite para alugar e lucrar. Isso hoje se faz presente, quando se tem mulheres negras na reprodução do trabalho doméstico, no trabalho de cuidado. Temos a reprodução dessa lógica ainda presente. As mulheres negras são as que mais ocupam trabalhos subalternos, invisíveis e precários. É necessário refletirmos sobre o quanto a reforma psiquiátrica aciona esse trabalho de cuidado como base da desinstitucionalização.

DesinstituteQuais as implicações políticas do processo de hiper-medicalização de mulheres negras? Essa prática se liga a uma estratégia de transformar a legítima revolta contra o status quo em conformação e adequação às injustiças sociais?

Rachel Gouveia – A resposta da medicalização da vida, especialmente, na vida das mulheres negras é uma forma de individualizar um problema estrutural, não é um problema específico do Brasil, mas há manifestações específicas aqui. Uma das respostas do Estado é essa via da medicalização, que significa também a retomada do aparato manicomial em um cenário de austeridade. E hoje, em bairros periféricos e de favela, consegue-se comprar psicotrópicos sem receita e como é que as pessoas sabem que elas podem usar determinado remédio? Porque elas aprendem, porque é passado isso enquanto alternativa para aliviar a desigualdade social, o desemprego, aliviar a violência doméstica, a violência armada e a pobreza. Para aguentar e continuar trabalhando, sustentando a sociedade, as mulheres negras estão buscando esse recurso. Algumas delas têm seus filhos mutilados ou mortos pelo braço do Estado.

Pensando nas tradições, a mulher negra é a matriarca, a liderança, a que representa os movimentos sociais de base, a que cuida de crianças, dos jovens, que faz o movimento de bairro e de comunidade.

É a que está ali no dia a dia, é a que permanece na comunidade para cuidar dos mais velhos, das pessoas doentes e é aquela que vai procurar a unidade de saúde. Elas cuidam, elas levam, elas sofrem, elas lideram. Ainda por cima tem uma exigência de que, como não somos “humanas”, nem “mulheres”, aguentamos a dor. Somos obrigadas a ir sempre do luto para a luta.

Desinstitute – Hoje, no Brasil existe racismo nos diagnósticos e processos de patologização? Por exemplo, existem formas de tratamento mais prescritas para grupos de pessoas específicas segundo critérios racistas, classistas, misóginos, transfóbicos etc.?

Rachel Gouveia – Há uma diferenciação sim na abordagem. Há uma diferenciação a partir da racionalização da existência. A equipe atende de maneira diferenciada, por exemplo, quando aparece um perfil que não é o clássico que é internado no manicômio, como mulher branca, loura e jovem. Enquanto isso, as mulheres negras estão ali quase que como parte do aparato manicomial. Para elas, a permanência é quase obrigatória. Nesse caso, a escuta é uma escuta meio distante: “o que ela está dizendo faz parte do delírio”. Enquanto para outras, que não representam o perfil majoritário do espaço, haverá uma atenção que visará a saída e a alta.

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