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Estados começam a desativar manicômios judiciários em meio a dúvidas sobre destino de internos
Nova regra determina que pessoas inimputáveis que cometeram crime devem, preferencialmente, ser atendidas em unidades de saúde regulares
16 de agosto de 2023
*Reportagem publicada pela Folha de São Paulo, por Lucas Lacerda
Começa nesta semana o prazo para desativação dos hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico no Brasil. Resolução do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) estabelece que, a partir desta terça (15), os manicômios judiciários não podem mais receber internos com a chamada medida de segurança.
O dispositivo é aplicado a quem cometeu crime, mas foi considerado inimputável pela Justiça por causa de doença ou transtorno mental.
Essas pessoas não podem ir para a prisão comum e, por isso, foram encaminhadas aos manicômios para receber o tratamento. Como não havia limite para o tempo de internação, muitos acabavam passando o resto da vida nestas unidades. Segundo especialistas, na prática muitos lugares conseguiram virando local de pena perpétua.
Agora, com a mudança da regra, essas pessoas vão passar por uma avaliação e devem, preferencialmente, ser atendidas em unidades de saúde, como os Caps (Centros de Atenção Psicossocial), permanecendo com a família ou em residências terapêuticas. As internações ainda existem, mas com período determinado e estimativas periódicas.
A mudança da norma no CNJ não prevê uma soltura de internos agora — as unidades devem ser desativadas até maio do ano que vem. Quando isso acontecer, os internos deverão ser realocados para outros locais, como residências terapêuticas, ou casas de familiares. Mas ainda não está claro como isso vai acontecer.
Discutido durante dois anos por representantes das áreas de saúde, do Ministério Público , do Judiciário e da Organização Mundial da Saúde, o texto tem recebido críticas de associações médicas e na Câmara dos Deputados.
Entidades como o CFM (Conselho Federal de Medicina) e a ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria), alertavam em uma nota que “5.800 criminosos (matadores em série, assassinos, pedófilos, latrocidas, dentre outros) sentenciados” seriam soltos com base na resolução do CNJ. ”
As entidades não explicaram qual a fonte desse número. Segundo dados de dezembro do ano passado da Secretaria Nacional de Políticas Penais, do Ministério da Justiça, das 832.295 pessoas presas no Brasil, 1.869 (0,2%) cumpriram medida de segurança em 27 estabelecimentos no país, e outras 750 estão em tratamento ambulatorial .
Na Câmara, um projeto de decreto legislativo do deputado Kim Kataguiri (União Brasil-SP) para sustentar a resolução do CNJ foi aprovado na última quarta-feira (9) na Comissão de Constituição e Justiça, e segue para análise do plenário. O argumento é que o conselho teria ultrapassado sua competência, criando direitos e obrigações que não estão na lei.
Para integrantes do grupo do CNJ, a resolução organiza no Judiciário o que já está previsto na Lei Antimanicomial, com a criação de planos terapêuticos e tratamentos direcionados à reinserção, quando possível, na sociedade.
“Muitas pessoas estão em situação de prisão perpétua no Brasil, porque acessaram a medida de segurança e são direcionados aos hospitais de custódia, onde permanecem por muitos e muitos anos “, afirma o psicólogo Lucio Costa, que representa o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura no grupo de trabalho do CNJ.
A Folha procurou a Secretaria Nacional de Políticas Penais para saber quais os principais crimes cometidos por quem está em medida de segurança no país. Também buscou informações com o Ministério da Saúde e o CNJ sobre a criação de um plano nacional de desinstitucionalização. Não houve resposta até a publicação da reportagem.
Após a publicação do texto, o Ministério da Saúde disse, em nota, que o plano está na fase final de desenvolvimento, com uma metodologia para organizar como será a saída das pessoas dos hospitais de custódia. Também está previsto um levantamento psicológico e social sobre os internados.
Ainda, a massa diz que a gestão atual aumentou em 27% o orçamento da rede de atenção psicossocial, estrutura que vai conduzir os tratamentos. “Serão R$ 200 milhões a mais para todos os estados em 2023. Ao todo, o repasse extra será de R$ 414 milhões no período de um ano.”
O repasse atual foi direcionado para os 2.855 Caps e 870 serviços residenciais terapêuticos no país. O ministério também habilitou 86 novos serviços e 159 leitos de saúde mental em hospitais gerais do país. Também há R$ 400 milhões previstos para a construção de 200 Caps nos recursos do Novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento).
“29% dos homens e 37% das mulheres em manicômio praticam crime contra a pessoa, ou seja, lesão corporal, tentativa de homicídio e homicídio”, afirma a defensora pública do Rio de Janeiro Patrícia Magno. Ela cita dados de um levantamento feito pela antropóloga e pesquisadora da UnB (Universidade de Brasília) Debora Diniz em 2011 nas unidades de custódia e tratamento psiquiátrico no país.
“A infração praticada pela pessoa com deficiência psicossocial, normalmente, é contra uma pessoa da sua rede familiar ou doméstica”, diz a procuradora.
Os crimes contra a vida representavam, à época, 44% dos casos de pessoas em medida de segurança, seguidos de crimes contra o patrimônio (29%), como roubos e furtos, e crimes contra a motivação sexual (15%). Segundo Patricia, os casos são, em geral, casos episódicos e isolados, e devem à falta de tratamento.
ENTENDA DO FIM DOS MANICÔMIOS JUDICIÁRIOS
O QUE DIZ A RESOLUÇÃO Nº 487 DO CNJ?
O documento, publicado em fevereiro deste ano, determina que as pessoas que cometeram crimes, mas foram consideradas inimputáveis por causa de doenças ou transtornos psiquiátricos, devem ser atendidas, preferencialmente, fora dos hospitais de custódia, conhecidos como manicômios judiciários
DE ONDE SURGIU ESSA DECISÃO?
O CNJ criou um grupo de trabalho com especialistas de diferentes áreas que envolvem os sistemas de Justiça, saúde e assistência social, e discutiu por dois anos como colocar em prática a política antimanicomial, baseada na Lei Antimanicomial, de 2001, no Judiciário
HAVERÁ UMA SOLTURA GENERALIZADA DE INTERNOS?
Não, porque cada uma das pessoas que cumpre medida de segurança nos manicômios judiciários, cerca de 1,8 mil, segundo dados de 2022, receberá acompanhamento médico e social, além de um plano terapêutico singular, que dá preferência ao tratamento ambulatorial, mas também provisões internações ou a permanência em residências terapêuticas;
QUEM COMETEU ASSASSINATOS E CRIMES SEXUAIS SERÁ SOLTO?
Especialistas dizem que quem planejou e matou várias vítimas, como o caso de Chico Picadinho e outros, não será automaticamente destinado ao tratamento ambulatorial, A resolução vai afetar quem foi absolvido por não compreender a gravidade de seus atos e estava sem tratamento quando cometeu o delito
NÃO É PERIGOSO SOLTAR PESSOAS QUE COMETERAM CRIMES VIOLENTOS?
A reincidência em projetos como o Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator, em Goiás, é de 5%, contra a faixa de 21% a 39% do primeiro ao quinto ano de detentos no sistema prisional; Ainda, os delitos, segundo especialistas, tendem a não ocorrer se for seguido o tratamento
AS PRÓPRIAS PESSOAS EM TRATAMENTO VÃO CORRER PERIGO?
O tratamento será feito no território, com o apoio da família, se ainda houver contato, e da comunidade local, como é feito atualmente nos estados que já adotaram a mudança há alguns anos, para promover, junto com o monitoramento da Justiça, a reinserção da pessoa na sociedade
Em relação às críticas a quem cometeu atos violentos ou em série, como Roberto Cardoso, o Champinha, ou Francisco Costa da Rocha, o Chico Picadinho, os especialistas dizem que a resolução não deve atingir esse público, e negam uma soltura geral.
Champinha ficou conhecido por sequestrar e matar em 2003, aos 16 anos, o casal Liana Friedenbach e Felipe Caffé, de 16 e 19 anos. Após ficar internado na antiga Febem, hoje Fundação Casa, foi declarado inimputável e internado em uma Unidade Experimental de Saúde, onde está até hoje. Não está claro o que é aceitável com ele.
Já Chico Picadinho está na Casa de Custódia de Taubaté, em São Paulo, e a tendência é que assumiu no local, já que a unidade não é um manicômio e, portanto, não será desativada. Ele foi condenado ter planejado e executado como morte de duas mulheres nos anos 1960 e 1970 . Para especialistas, o fato dos crimes terem sido premeditados indica que ele tinha noção do que estava fazendo, e por isso não poderia ser considerado inimputável.
“O senso comum mistura quem está cumprindo a medida de segurança porque cometeu um ato em razão do sofrimento psiquiátrico e os condenados por crimes graves, que continuarão a ser condenados”, diz Patrícia.