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Nota do Desinstitute: Edital de custeio para hospitais psiquiátricos e Portaria provocam retrocessos na política de saúde mental

Atos recentes do governo federal determinaram a suspensão do financiamento do programa de desinstitucionalização, além de repasse no valor de R$10 milhões a hospitais psiquiátricos

Arte gráfica mostra sete bonequinhos de papel (cor branca) de mãos dadas na posição transversal. A sombra dessas figuras está projetada na parte de baixo da peça gráfica. A imagem projetada não é a dos bonecos, mas de grades cor cinza-escura. No ângulo oposto posterior, está escrito:
Arte gráfica por Gabriel Zanucci

13 de abril de 2022

Por desinstitute

Nas últimas semanas, atos do governo federal determinaram a suspensão do custeio mensal destinado ao programa de desinstitucionalização que integra a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), além de um repasse no valor de R$10 milhões a hospitais psiquiátricos, previsto em edital público lançado pela Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas (SENAPRED), do Ministério da Cidadania.

A Portaria GM/MS nº 596, de 22 de março de 2022, que suspende as verbas destinadas à desinstitucionalização, revoga seções de outras portarias, desmontando praticamente todas as previsões legais para o financiamento dos programas de desinstitucionalização.

Prevista pela Lei nº 10.216/01 – ou “Lei da Reforma Psiquiátrica” –, de 2001, a desinstitucionalização consiste em uma obrigação do Estado, que, por meio de equipamentos já existentes no Sistema Único de Saúde (SUS), deve inserir na vida social, de forma plena, todas as pessoas que foram privadas de liberdade por internações em hospitais psiquiátricos e em manicômios judiciários. 

 O fato de tal decisão, com impactos contundentes sobre temas tão complexos, ter sido definida  por meio de portaria sem consulta popular, tampouco discussão ampla com as principais instâncias de controle social, a exemplo do Conselho Nacional de Saúde (CNS), demonstra uma desconexão por parte do governo federal com os princípios do SUS e da política nacional de saúde mental. 

O caráter arbitrário do ato, portanto, converge com os interesses corporativos de proprietários de hospitais, em detrimento das garantias legais aos direitos das pessoas privadas de liberdade em instituições psiquiátricas, e corrobora com o desmonte da política nacional de saúde mental e das conquistas da reforma psiquiátrica. Nesse sentido, o Desinstitute reitera que as deliberações governamentais devem ser sempre enriquecidas pela escuta e pela participação de órgãos que atuem na área temática da alteração proposta, incluindo organizações da sociedade civil, o que, evidentemente, não ocorreu nesse caso.

Para tomar essa decisão, o Ministério da Saúde teria se apoiado em uma suposta ausência de solicitações de recursos para a desinstitucionalização por parte dos municípios brasileiros. No entanto, o órgão  sequer apresentou  dados que comprovem tal  alegação, postura que demonstra, mais uma vez, a opção pela não transparência em relação a decisões que impactam diretamente a garantia dos princípios do SUS. 

Ressaltamos, a título de elucidação,  que, desde o ano de 2015, o Ministério da Saúde deixou de publicar um importante documento de prestação de contas sobre a política de saúde mental brasileira, o Saúde Mental em Dados. Tal documento cumpria a função de dar transparência nos rumos da gestão do próprio Ministério, além de permitir aos órgãos de controle social um monitoramento mais aprofundado sobre a política pública.

Ainda  que os municípios não tivessem solicitado o recurso disponível para implementação do programa de desinstitucionalização, isso, de modo algum, justificaria a suspensão do financiamento. Isso porque, a desinstitucionalização possui respaldo não apenas na legislação interna, em especial com a entrada em vigor da “Lei da Reforma Psiquiátrica” em 2001, mas também no direito internacional, tendo o Brasil, inclusive, sofrido uma condenação na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que, em 2006, ao julgar o “Caso Ximenes Lopes x Brasil”, reconheceu a prática de graves violações de direitos humanos, estabelecendo, dentre outras obrigações, que o país elaborasse uma política antimanicomial. 

A sentença do “Caso Ximenes Lopes x Brasil” foi a primeira condenação brasileira na Corte Interamericana de Direitos Humanos, além de ser também o primeiro precedente da Corte a respeito de violação de direitos humanos no campo da saúde mental. Apesar das recomendações postuladas pela decisão, o Estado brasileiro reiteradamente tem descumprido suas resoluções. 

O processo de desinstitucionalização é, portanto, respaldado e endossado por organismos internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU), a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a já mencionada Corte Interamericana de Direitos Humanos. Além disso, os compromissos assinados pelo Brasil em matéria de direitos humanos não permitem retrocessos como os representados pelos recentes atos.

 Ou seja, é dever do Estado brasileiro garantir a efetivação das recomendações que dizem respeito à  desinstitucionalização. Nesse sentido, ainda que seja   comprovada a baixa adesão ao financiamento por parte dos municípios, o governo federal deve apurar seus reais motivos e buscar resolver o problema identificado, promovendo uma mobilização nacional para que os recursos de desinstitucionalização sejam corretamente demandados e distribuídos. Cabe aqui reforçar que a saúde, assim como outros deveres fundamentais do Estado, não é  responsabilidade de apenas uma esfera de governo, mas das três (União, Estados e Municípios), que de forma coordenada devem garantir a efetivação desses direitos. 

Além do Desinstitute, outras entidades já manifestaram sua discordância em relação aos recentes atos do governo federal. Em nota, publicada nesta segunda-feira, 11/04, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems)  recomendam a suspensão do Edital de chamamento público nº 3/2022, do Ministério da Cidadania, que trata do financiamento de hospitais psiquiátricos geridos pelas chamadas organizações da sociedade civil. 

Os problemas sociais de saúde pública possuem caráter intersetorial, entretanto, o edital representa mais uma demonstração de que políticas públicas no âmbito da saúde mental –  em especial as relativas ao cuidado e à reabilitação de pessoas que fazem uso problemático de álcool e outras drogas – estão sendo coordenadas por outras áreas que não a da pasta da saúde, o que tem contribuído para a estigmatização da pauta. 

Cabe ressaltar, ainda, que a falta de discussão ampla sobre a temática e o atropelamento de instâncias democráticas, constituídas justamente para o desenvolvimento da política pública – tais como o Conselho Nacional de Saúde e demais órgãos colegiados que integram o SUS – resulta em um apagamento grave do controle social, o que não pode ser aceito. 

Além disso, o chamamento publicado pelo Ministério da Cidadania  abre caminho para o financiamento público de grupos de interesse privado, o que é incompatível com as normativas e convenções nacionais e internacionais que postulam o controle social por meio de inspeções e fiscalizações, a defesa dos direitos humanos e a progressiva priorização dos cuidados em liberdade. 

Historicamente, as chamadas organizações sociais e as comunidades terapêuticas possuem conflitos de interesse com a política de desinstitucionalização, por se beneficiarem financeiramente com a manutenção ou ampliação de vagas de internação. 

Segundo o Painel Saúde Mental: 20 anos da Lei 10.216/01, lançado pelo Desinstitute em 2021, o principal programa de avaliação de hospitais psiquiátricos financiados pelo poder público, o PNASH/Psiquiatria, está suspenso desde 2014. No entanto, em 2017, o Ministério da Saúde aumentou em 60% o financiamento para internações nessas instituições, incremento que não levou em conta o cenário de violações aos direitos humanos no âmbito dessas instituições.

Dados da última inspeção nacional em hospitais psiquiátricos, coordenada em 2018 pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) e outros órgãos de controle, mostram que mais da metade dessas instituições não apresentavam permissão sanitária válida para funcionamento, e, pelo menos, 42% ofereciam alimentação inapropriada. Em 77% dos locais foi identificado o uso injustificado e recorrente da contenção mecânica em pacientes, além do impedimento ao seu livre acesso à comunicação com familiares. 

Diante do que argumentamos, cabe às organizações da sociedade civil, aos movimentos antimanicomiais e a toda a sociedade denunciar e  enfrentar mais esse pacote de retrocessos que ataca categoricamente princípios e conquistas que, mais que fundamentais, são determinantes à própria existência do Estado Democrático de Direito.  

Desinstitute, 13 de abril de 2022.

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