Notícias e publicações
O 10 de maio na História
O real do horror: quando o nazismo incinerou o saber médico

12 de maio de 2025
A queima de livros protagonizada pelo regime nazista em 10 de maio de 1933 constitui um acontecimento paradigmático que escancara o encontro entre ideologia e o gozo mortífero do poder. Nas praças alemãs, não eram apenas páginas que ardiam, mas todo um campo simbólico de conhecimento que tentava-se extirpar do tecido social. No que tange à medicina e seus saberes correlatos, o apagamento foi sistemático e revelador.
O que se procurava queimar, afinal? Precisamente aquilo que denunciava o impossível da fantasia nazista de uma sociedade sem falta, sem diferença – uma tentativa perversa de obturar a castração simbólica. A ciência médica dos autores perseguidos apontava justamente para o Real que o nazismo tentava recusar: a incompletude constitutiva do humano, a pluralidade irredutível do desejo, o corpo que escapa às tentativas de normatização absoluta.
A engrenagem da destruição: antecedentes e organização da queima de livros
A incineração de obras científicas e literárias em maio de 1933 não foi um ato espontâneo, mas o resultado de um meticuloso planejamento que se inscreve na lógica da “sincronização” (Gleichschaltung) – processo pelo qual o regime nazista buscou alinhar todas as instituições alemãs à sua ideologia nos primeiros meses após a tomada de poder.
Em 6 de abril de 1933, a União Estudantil Alemã (Deutsche Studentenschaft), já infiltrada por elementos nacional-socialistas, publicou as “Doze Teses contra o Espírito Não-Alemão” (Wider den undeutschen Geist), manifesto que declarava guerra à “decadência intelectual” e exigia “pureza na língua e nos escritos alemães”.
O documento, afixado em universidades por todo o país, anunciava explicitamente: “O judeu só pode pensar em língua judaica. Se escrever em alemão, está mentindo” (FRIEDLÄNDER, 2009, p. 119).
O principal articulador desta campanha foi Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda do Reich, que transformou um movimento estudantil em operação estatal coordenada. Segundo seu diário, Goebbels viu na iniciativa estudantil uma oportunidade de espetacularização do “despertar alemão”: “Falei com os estudantes sobre a queima de livros. Deve ser realizada em todas as cidades universitárias alemãs. Vou fazer um discurso em Berlim. Isto deve se tornar uma grande e simbólica cerimônia” (GOEBBELS apud EVANS, 2005, p. 423).
Entre 26 de abril e 10 de maio de 1933, desenvolveu-se a “Ação contra o Espírito Não-Alemão” (Aktion wider den undeutschen Geist).
Professores universitários forneceram listas de obras a serem banidas. Bibliotecas e livrarias foram invadidas. Em Berlim, estudantes saquearam o Instituto de Sexologia de Magnus Hirschfeld, removendo mais de 20.000 volumes e 5.000 fotografias.
No dia 10 de maio, às 22 horas, tochas acenderam-se simultaneamente em 34 cidades universitárias alemãs. Em Berlim, na Opernplatz (atual Bebelplatz), aproximadamente 40.000 pessoas assistiram ao espetáculo. Enquanto estudantes uniformizados jogavam livros nas chamas, locuções radiofônicas transmitiam “sentenças de fogo” (Feuersprüche) – justificativas para a destruição de cada autor.
Não houve transmissão televisiva do evento, já que a televisão ainda era uma tecnologia experimental em 1933, mas o regime utilizou amplamente o rádio (então o meio de comunicação de massa mais avançado) e produziu cinejornais que foram exibidos nos dias seguintes em todo o país.
Como observa Bytwerk em sua análise da propaganda nazista, “a coreografia da queima foi pensada principalmente para a disseminação via rádio e fotografia, criando um ritual coletivo que pudesse ser experimentado mesmo por quem não estava fisicamente presente” (BYTWERK, 2008, p. 91).
Para legitimar o que poderia parecer um ato de barbárie, os organizadores buscaram dar ao evento uma aura de solenidade acadêmica. Em sua minuciosa reconstrução do dia, Ritchie assinala que “em cada cidade, um professor universitário proferia um discurso antes da queima, conferindo um verniz de respeitabilidade intelectual ao que era, essencialmente, um ato de destruição cultural” (RITCHIE, 2006, p. 158).
Em Berlim, o auge da cerimônia foi o discurso de Goebbels, no qual declarou: “A era do extremo intelectualismo judeu chegou ao fim, e o avanço vitorioso da revolução alemã abriu caminho também para o modo alemão de viver, para o Estado alemão e para a verdadeira essência alemã” (GOEBBELS apud FRIEDLÄNDER, 2009, p. 121).
O evento foi meticulosamente organizado para maximizar seu impacto simbólico. Os livros não eram simplesmente jogados ao fogo – eram lançados por estudantes que gritavam “condenas” (Feuersprüche) ritualizadas para cada autor ou obra. Para Freud, por exemplo, a sentença proclamada foi: “Contra a supervalorização da vida instintual e degradação da alma! Entrego às chamas os escritos de Sigmund Freud” (BAKER, 2008, p. 76).
Como observa Bauer, “a queima não foi um evento isolado, mas parte de um continuum que começou com a exclusão simbólica e acabou na destruição física. O livro serviu como substituto metonímico do corpo do autor – um ensaio para extermínios futuros” (BAUER, 2015, p. 118).
Cronologia dos silenciados: o ataque ao simbólico
Albert Einstein (1879-1955) A perseguição a Einstein revela a dimensão psicótica do projeto nazista, que não hesitou em rejeitar até mesmo as mais brilhantes contribuições científicas em nome de um delírio de pureza. A teoria da relatividade, ao desestabilizar as noções absolutas de tempo e espaço, confrontava a fixidez paranóica da ideologia nacional-socialista.
“A ciência de Einstein representava uma ameaça por desvelar a ilusão de totalidade que o nazismo tentava sustentar. Sua relativização do absoluto era insuportável para um regime que se pretendia detentor da verdade última”, analisa Žižek em sua leitura do período (ŽIŽEK, 2008, p. 112).
Sigmund Freud (1856-1939) A obra freudiana foi talvez a mais intolerável para o imaginário nazista. Ao postular o inconsciente como uma instância que subverte o controle egóico, Freud introduziu uma rachadura irreparável no sonho de domínio absoluto que alimentava o fascismo. Sua elaboração sobre a pulsão de morte expôs, avant la lettre, o núcleo autodestrutivo que habitava o próprio coração do projeto nazista.
Quando Freud, já no exílio, completou “Moisés e o Monoteísmo”, estava desmontando a própria noção de identidade pura que servia de alicerce à fantasia ariana. Como observa Elisabeth Roudinesco, “Freud confrontou o nazismo com aquilo que ele mais temia: a verdade sobre a mestiçagem originária de toda cultura” (ROUDINESCO, 2016, p. 278).
Alfred Adler (1870-1937) A ênfase adleriana na superação do sentimento de inferioridade e na importância do vínculo social apontava para o núcleo traumático do nazismo: um profundo complexo de inferioridade coletivo compensado por uma identificação maciça com um ideal de eu inflado e agressivo.
“A teoria adleriana sobre como o ressentimento pode estruturar personalidades autoritárias oferecia uma chave de leitura para o que se passava na própria sociedade alemã – precisamente o que o regime queria evitar que fosse simbolizado”, aponta Makari em sua história da psicanálise (MAKARI, 2012, p. 342).
Magnus Hirschfeld (1868-1935) A destruição do Instituto de Sexologia de Hirschfeld constituiu um dos episódios mais brutais do ataque nazista ao saber. Seus estudos sobre a diversidade sexual representavam a própria negação da fantasia de pureza e uniformidade que estruturava o imaginário nazista.
O que Hirschfeld revelava, e o que provocava tanto horror aos nazistas, era precisamente a impossibilidade de reduzir a sexualidade humana a categorias fixas e “naturais”.
“A fogueira que consumiu os arquivos de Hirschfeld foi uma tentativa de forcluir a própria diversidade do desejo humano, retornando posteriormente no Real das atrocidades cometidas pelos nazistas”, concluiu Butler em sua análise sobre biopolítica e fascismo (BUTLER, 2017, p. 191).
Wilhelm Reich (1897-1957) Reich, com sua articulação entre repressão sexual e fascismo, tocou na ferida mais profunda do projeto nazista. Sua obra “Psicologia de Massas do Fascismo” desvelou como o autoritarismo se alimenta da economia libidinal reprimida, convertendo-a em identificação cega com o líder e agressividade contra o diferente.
“Reich percebeu o que muitos teóricos ignoraram: que o fascismo não opera apenas pela violência física ou pela manipulação ideológica, mas por uma mobilização perversa do desejo. O nazismo oferecia um gozo – ainda que mortífero – em troca da submissão”, explicita Theweleit em seu estudo sobre a corporalidade fascista (THEWELEIT, 2010, p. 257).
O impossível de simbolizar: a ciência sob jugo totalitário
O extermínio do saber médico pelos nazistas não foi simplesmente uma questão de censura, mas um ataque à própria possibilidade de simbolização da experiência humana. Ao queimar livros que abordavam a sexualidade, o inconsciente, a relatividade e a diversidade, o regime buscava forcluir exatamente o que retornaria no Real dos campos de concentração: a impossibilidade de eliminar a diferença constitutiva do humano.
A medicina nazista, que substituiu o conhecimento científico banido, revelou-se uma prática perversa a serviço do gozo do Outro. Como analisou Agamben, “o médico nazista realizou a fantasia última do biopoder moderno: a possibilidade de separar no homem a ‘vida que merece ser vivida’ da ‘vida indigna de ser vivida'” (AGAMBEN, 2010, p. 149).
Deste modo, o extermínio dos saberes médicos em 1933 foi o prelúdio simbólico para o extermínio dos corpos que se seguiria. O que não pôde ser integrado via conhecimento científico retornou sob a forma dos experimentos médicos nos campos e da eliminação sistemática dos considerados “impuros”.
Da queima de livros à solução final: o deslizamento do significante
O horror nazista revelou, em sua progressão, o deslizamento metonímico da destruição: dos livros aos seus autores, dos autores a populações inteiras. A profecia do poeta Heinrich Heine, “onde se queimam livros, no final queimam-se pessoas”, demonstra precisamente esta lógica significante onde um elemento substitui o outro na cadeia da destruição.
Este processo ilustra o que Lacan denominaria “passagem ao ato” – quando o sujeito, incapaz de simbolizar ou elaborar o que o angustia, precipita-se em uma ação destrutiva no Real. O nazismo, como estrutura paranóica coletiva, foi incapaz de integrar a diferença em seu sistema simbólico e, portanto, tentou eliminá-la no Real.
“O projeto de extermínio nazista pode ser lido como uma tentativa psicótica de eliminar no Real aquilo que não se conseguia simbolizar: a alteridade radical”, propõe Safatle em sua análise sobre o totalitarismo (SAFATLE, 2020, p. 83).
A intolerância sistematizada: o nazismo como estrutura
O que distinguiu o nazismo de outras formas históricas de perseguição foi sua capacidade de converter a intolerância em um sistema total, com pretensões científicas e aparato burocrático. A perseguição aos médicos e cientistas judeus não foi um efeito colateral, mas parte essencial deste projeto de estabelecer uma “ciência alemã” purificada.
Esta sistematização da intolerância operou no que Lacan chamaria de registro Imaginário – a construção de uma imagem ideal (o ariano) contra uma imagem degenerada (o judeu, o doente mental, o homossexual). O nazismo converteu diferenças simbólicas em oposições imaginárias absolutas, para as quais a única “solução” possível era a eliminação.
Como argumenta Adorno, “Auschwitz não foi um desvio da marcha do progresso, mas sua consequência lógica quando a razão instrumental é desvinculada da reflexão crítica” (ADORNO, 2009, p. 302).
Os médicos nazistas, ao substituírem seus colegas perseguidos, demonstraram como a técnica sem ética converte-se facilmente em instrumento de barbárie.
O que resta: o testemunho como presente
O memorial na Bebelplatz, com sua biblioteca de estantes vazias, materializa o vazio deixado pela destruição, que testemunha o que se tentou apagar.
Este vazio não é apenas uma ausência, mas um testemunho ativo do que foi perdido. É precisamente ao redor deste vazio que se pode reconstruir um saber que não recaia na mesma pretensão totalitária que caracterizou o nazismo – um saber que inclua sua própria impossibilidade, sua própria incompletude.
“A verdadeira resposta ao horror nazista não é a construção de um saber total e sem falhas – o que reproduziria sua lógica – mas a sustentação de um saber que inclua o não-saber como sua dimensão constitutiva”, propõe Didi-Huberman em sua reflexão sobre as imagens do horror (DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 67).
A história da queima dos livros médicos em 1933 nos convoca, assim, não apenas a lembrar o que foi destruído, mas a sustentar uma posição ética diante do saber: reconhecer que nenhum conhecimento pode ser absoluto, que nenhuma verdade pode ser total, e que é precisamente nesta falta estrutural que reside nossa humanidade comum.
Referências Bibliográficas
ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. Tradução Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução Henrique Burigo. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2010.
BAKER, Keith Michael. The Scientific Revolution and the Foundations of Modern Science. Westport: Greenwood Press, 2008.
BAUER, Yehuda. A History of the Holocaust. Revised Edition. New York: Franklin Watts, 2015.
BUTLER, Judith. Cuerpos aliados y lucha política: hacia una teoría performativa de la asamblea. Barcelona: Paidós, 2017.
BYTWERK, Randall L. Landmark Speeches of National Socialism. College Station: Texas A&M University Press, 2008.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens apesar de tudo. Tradução Vanessa Brito e João Pedro Cachopo. Lisboa: KKYM, 2012.
EVANS, Richard J. The Third Reich in Power, 1933-1939. New York: Penguin Books, 2005.
FRIEDLÄNDER, Saul. Nazi Germany and the Jews: The Years of Persecution, 1933-1939. Volume 1. New York: Harper Perennial, 2009.
MAKARI, George. Revolution in Mind: The Creation of Psychoanalysis. New York: Harper Perennial, 2012.
RITCHIE, J. M. German Literature Under National Socialism. London: Routledge, 2006.
ROUDINESCO, Elisabeth. Freud: em defesa da psicanálise. Tradução André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.
SAFATLE, Vladimir. Maneiras de transformar mundos: Lacan, política e emancipação. São Paulo: Autêntica, 2020.
THEWELEIT, Klaus. Male Fantasies: Women, Floods, Bodies, History. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2010.
ŽIŽEK, Slavoj. A visão em paralaxe. Tradução Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo, 2008.