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Painel Saúde Mental: 20 anos da Lei 10.216/01
Pesquisa produzida pelo Desinstitute recompõe dados da Rede de Atenção Psicossocial negligenciados pelo governo federal nos últimos anos
23 de setembro de 2021
O Painel Saúde Mental – 20 anos da lei 10.216/01, produzido pelo Desinstitute e lançado nesta quinta-feira (23), mostra que, no ano em que a pandemia da Covid-19 chegou ao Brasil e escancarou a importância da atenção à saúde mental da população, dados e serviços públicos do campo psicossocial eram negligenciados pelo governo federal.
A pesquisa analisa a Política Nacional de Saúde Mental (PNSM) dos últimos 20 anos, desde a promulgação da lei da reforma psiquiátrica brasileira, que prevê que pessoas diagnosticadas com transtornos mentais sejam tratadas “preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental (…) com a devida participação da sociedade e da família”.
Segundo os organizadores do Painel, a produção da pesquisa foi motivada pela falta de transparência de dados do governo federal em relação à Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), a partir de 2016. Naquele ano, o relatório anual “Saúde Mental em Dados”, divulgado pelo Ministério da Saúde desde 2001, deixou de ser publicado.
Apesar da Lei 10.2016, o documento mostra que o governo federal aumentou o financiamento público de hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas nos últimos anos, enquanto investimentos federais voltados aos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) eram represados.
“Do início dos anos 2000 até 2015, o campo da saúde mental acompanhava os avanços progressivos de uma política de transição entre o cuidado centrado na assistência hospitalar e o cuidado em liberdade. Mas, desde então, e especialmente a partir de 2019, quando o atual governo passou a realizar mudanças estruturais nas políticas nacionais de Saúde Mental e sobre Drogas, o campo enfrenta um verdadeiro apagão de dados e a RAPS caminha para trás, em direção ao seu desmonte”, afirma Lúcio Costa, diretor-executivo do Desinstitute e um dos coordenadores da pesquisa.
Hospitais psiquiátricos: Avaliação suspensa e aumento de financiamento público
Um dos pontos de atenção levantado pela publicação é a suspensão do Programa Nacional de Avaliação Hospitalar/Psiquiatria (PNASH/Psiquiatria), desde 2014. Isso representa, na prática, a interrupção do principal mecanismo de avaliação dos hospitais psiquiátricos brasileiros financiados pelo SUS.
O documento lembra ainda que, mesmo sem a avaliação dos hospitais, em 2017, o Ministério da Saúde aumentou em cerca de 60% o financiamento público para internações nessas instituições.
Com a prerrogativa de estabelecer critérios mínimos para a assistência psiquiátrica hospitalar no SUS, o PNASH/Psiquiatria pode recomendar a interrupção do financiamento estatal de hospitais com leitos de baixa qualidade assistencial. Com a suspensão do Programa, nove instituições psiquiátricas indicadas para descredenciamento, em 2016, seguem até hoje operando com leitos públicos, informa o Painel.
“Devemos lembrar que hospitais psiquiátricos são, até hoje, denunciados frequentemente por violar direitos humanos. Então, a falta do PNASH somada ao aumento de financiamento público a essas instituições, só contribui para o fortalecimento de uma lógica manicomial de Estado que prefere segregar e punir ao invés de acolher e cuidar”, avalia Costa.
Dados da última inspeção nacional em hospitais psiquiátricos, coordenada em 2018 pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) e outros órgãos federais de controle, mostram que 52% das instituições vistoriadas pelo país não apresentavam alvará ou licença sanitária válida e, ao menos 42% delas, ofereciam alimentação insuficiente ou de má qualidade. Além disso, em 77% dos locais foi identificado o uso da contenção mecânica em pacientes como prática recorrente e sem justificativa clínica, além do impedimento ao livre acesso dos internos à comunicação com seus familiares.
Atual política de drogas focada em comunidades terapêuticas
A pesquisa também apresenta dados sobre os crescentes investimentos públicos nas comunidades terapêuticas (CTs), instituições geridas por entidades privadas, em sua maioria de caráter religioso, cujos atendimentos são, via de regra, voltados a usuários de álcool e outras drogas e baseados na privação do convívio social.
De acordo com o Painel, desde 2010, as comunidades terapêuticas brasileiras recebem financiamento do setor de Justiça, via Fundo Nacional Antidrogas (FUNAD), por meio de editais públicos. Naquele primeiro ano, os gastos federais somavam R$ 12,86 milhões. Em 2018, as instituições receberam cerca de dez vezes mais, ultrapassando R$ 124 milhões.
Já nos últimos anos, após a sanção de uma nova Política Nacional sobre Drogas, aprovada por decreto em 2019 pelo presidente Jair Bolsonaro, o governo investiu na centralidade das comunidades terapêuticas para a oferta de “tratamento” a usuários problemáticos de álcool e outras drogas. Com isso, o Ministério da Cidadania, responsável pela coordenação da atual PNAD, informou ter reservado, via FUNAD, R$ 153,7 milhões, em 2019, e R$ 300 milhões, em 2020, para o financiamento de CTs via editais.
Segundo Lucio Costa, o crescente apoio federal às CTs ocorre apesar das recorrentes denúncias de violações cotidianas de direitos humanos noticiadas ao longo dos últimos anos e verificadas no Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas (2019).
Diferente do que previa a antiga política de drogas desde 2002, os atendimentos oferecidos aos usuários das CTs têm como base a abstinência exclusiva, em detrimento do modelo de redução de danos, até então adotado como parâmetro nos serviços públicos de saúde no Brasil e preconizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Na avaliação de Nicola Worcman, diretora de assuntos científicos do Desinstitute e também coordenadora da pesquisa, “em nome da proteção e do cuidado da população, a atual PNAD exalta um modelo de baixa acessibilidade, cujo tratamento coercitivo e criminalizante desconsidera o protagonismo do usuário, bem como seu contexto social, sua história, suas vivências cotidianas e suas singularidades como indivíduo”.
Além disso, Worcman, que também é médica psiquiatra, reforça que a abordagem da redução de danos é respaldada pela OMS e não exclui o modelo de abstinência para o tratamento de usuários problemáticos de álcool e outras drogas, “mas abrange possibilidades mais inclusivas de cuidado que valorizam a autonomia e a participação do indivíduo sobre o seu próprio processo de tratamento”.
“Represamento de CAPS”
Diante do fortalecimento de hospitais psiquiátricos e CTs sob a atual gestão federal, dados do Painel revelam ainda que, desde 2017, há uma queda na velocidade de implantação anual dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) pelo Ministério da Saúde. Isso representa uma diminuição, nos últimos anos, do número de novos CAPS habilitados para recebimento de financiamento federal.
Considerados serviços centrais da RAPS, os CAPS oferecem, em suas diferentes modalidades, atendimento clínico com equipes multiprofissionais a pessoas em sofrimento psíquico e suas famílias, abrangendo crianças, adultos e usuários problemáticos de drogas.
Dos últimos 20 anos, 2018 foi o período com menos CAPS cadastrados: apenas 30, seguido de 2019 e 2020, com 78 e 94, respectivamente. Já os anos da série com mais serviços implantados pelo governo federal foram 2006, com 272 unidades habilitadas, e 2012, com 196.
“Qual o argumento do governo federal para ter cadastrado menos CAPS nesses últimos anos?”, questiona a pesquisadora do Painel, Renata Weber. “É preciso deixar claro que, na prática, isso impossibilita a ampliação do acesso da população a serviços de saúde e ao pleno exercício dos seus direitos civis, que só são viabilizados pela reinserção social das pessoas com trabalho, lazer, moradia, na sua família e comunidade”, explica.
Ainda segundo Weber, o que existe atualmente é um “represamento no processo de financiamento federal de serviços de base comunitária”, confirmado por um levantamento do Painel junto às Coordenações Estaduais de Saúde Mental, que informam que, até o ano passado, existiam ao menos 95 CAPS aguardando cadastramento junto ao Ministério da Saúde.
Desinvestimento na Política e falta de evidências
O Painel Saúde Mental revela ainda que os gastos federais per capita com a Política de Saúde Mental passaram de R$ 16,90, em 2012, para R$ 12,40, em 2019 (mesmo patamar de 2007).
Em junho deste ano, a OMS lançou um documento com informações que corroboram a análise dos organizadores do Painel e usuários do SUS ouvidos pelo Desinstitute. Na publicação, intitulada “Orientação sobre Serviços de Saúde Mental Comunitária: Promovendo Abordagens Centradas na Pessoa e Baseadas em Direitos”, são feitas recomendações para que os países repensem seus atuais sistemas de saúde mental, com base na “criação de serviços livres de coerção” e na adoção de uma abordagem de direitos humanos como princípio governante.
“As práticas coercitivas são difundidas e cada vez mais utilizadas em serviços de países do mundo inteiro, apesar da falta de provas de que elas oferecem quaisquer benefícios, e da significativa evidência de que elas levam a danos físicos e psicológicos e até mesmo à morte”, escrevem os pesquisadores da OMS.
Por fim, o coordenador do Painel reforça que “diante do número exorbitante de mortes causadas pela pandemia, das altas taxas de desemprego e da constante ameaça de colapso do sistema de saúde no país, caso a política pública de saúde mental siga no atual rumo, muitas pessoas serão violadas em seus direitos, sob o falso manto do cuidado, e ficarão desassistidas.”
“Com esses novos dados disponíveis, cobramos urgência do governo federal na retomada de transparência e na implementação de políticas públicas de saúde mental guiadas por evidências, que garantam cuidado qualificado, plural, humanizado, e respeitem os direitos humanos, a diversidade e a autonomia de seus usuários”, conclui Nicola Worcman.
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