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Pelo direito de ser travesti: que minha identidade não seja patologizada

Pelo direito de ser travesti: que minha identidade não seja patologizada

29 de janeiro de 2023

Por desinstitute

Por Ágatha Lima*

Em 2019 fui frequentadora do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) ainda lida socialmente como “ele”, me encantei pelo que fui apresentada na época, os trabalhos em articulação com o território, os grupos, as comemorações e a atenção e acolhimento que recebi da terapeuta ocupacional que fazia parte da equipe – , nos atendimentos individuais e no decorrer do processo terapêutico -, fizeram com que eu me encantasse pelo que estava conhecendo naquele momento. 

Apesar de hoje conseguir visualizar muitas dessas lembranças de forma crítica a partir do aprofundamento no estudo e prática da luta antimanicomial, tenho me dado conta de que aquele espaço e, principalmente, aquele cuidado, me possibilitaram muita potência criativa, produção de vida e de histórias.

 Dadas essas experiências, decidi cursar Terapia Ocupacional. Entrei fascinada e, conforme os semestres foram passando, percebi que a vontade de trabalhar na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), e em articulação com o território, permanecia viva.

Em maio de 2021, passei a integrar o Fórum da Luta Antimanicomial de Sorocaba (FLAMAS), onde permaneço militando ao lado de mulheres com as mais diversas mulheridades, que, numa construção coletiva, social e política, lutam por um cuidado em saúde mental pautado na liberdade, no respeito à diversidade e garantidor de direitos.

Me reconhecendo nesse processo, tenho entendido e praticado a terapia ocupacional como meio de pensar caminhos possíveis para uma ética do cuidado em liberdade que, não apenas questione os pilares das epistemologias hegemônicas,  que produzem sua ciência alinhada à dominação capitalista, colonial e patriarcal, mas que  possibilite a subversão dessas  práticas, especialmente aquelas  criadas pela psiquiatria dominante.

Essa ideia tem me permitido, também, firmar em minha identidade enquanto corpo transvestigenere, que foge à normalidade e, por isso, deve ser contido, medicado, patologizado.

A patologização, enquanto fenômeno, permite que corpos como o meu sejam matáveis, esquartejáveis e submetidos a violências que vêm à tona em todos os espaços que ocupamos. O espaço da universidade, por exemplo (que, por si só, é marcado por uma cis proteção), tem firmado, nesse momento, um compromisso de apagamento do meu corpo e das minhas demandas. Isso porque, mesmo após a adoção do meu nome social, violências continuam sendo realizadas. O fato é que pessoas cisgênero não suportam ocupar o mesmo lugar de intelectualidade de uma travesti.

O simples uso do banheiro foi motivo de discussões públicas e questionamentos que sugeriam uma espécie de adaptação de pessoas lidas como “normais” com a minha presença, afirmando o pacto de cis-proteção que deixa evidente quais corpos não são bem-vindos em determinados ambientes.

A deslegitimação das minhas vivências tem me atravessado em diversos momentos ao longo do meu cotidiano universitário. De queixas a denúncias pouco ouvidas, passei a me sentir “poliqueixosa”, fruto do peso de ser um corpo visto e lido como desviante. E é a partir da patologização, que, nesse contexto, atua como dispositivo de expulsão e assassinato de corpos não normativos, que meus desejos e necessidades são deslegitimados, me causando adoecimento.

Essa movimentação de tornar identidades transvestigeneres corpos doentes representa, também (mas não somente), uma proteção da cisgeneridade, que se exime de qualquer responsabilização pela produção e manutenção dessas violências.  Quando minimizam a seriedade das denúncias e da interpretação de mundo produzida por uma travesti; quando somos interpretadas como violentas por denunciarmos a transfobia que atravessa nossa pele diariamente; quando queixas que levamos às nossas redes são tratadas como assuntos que devem ser deixados “para lá”, simbolicamente estão nos dizendo que nossa voz não merece ser ouvida.

Ou seja, a própria patologização representa para o sistema sexo-gênero uma proteção das violências produzidas por quem também fabrica os diagnósticos e é nesse ciclo articulado e perverso das hegemonias que a cisgeneridade produz violências estruturais e se defende de ser responsabilizada e de ter sua reparação histórica cobrada ao mesmo tempo. Nessa disputa de narrativas entre a travesti dita louca e doente mental e violenta e entre o doutor que é entendido de DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) deixo a pergunta: qual é mais ouvida/o/e?

Poderia passar um tempo aqui citando algumas experiências de violência que me marcaram, mas o fato é que a patologização, criada, permitida e validada pela psiquiatria hegemônica e pelas relações de poder traçadas pela branquitude, pela cisheternormatividade e pelo sistema sexo-gênero, utilizam de muitos dispositivos que trabalham em articulação, sempre em prol de um mesmo fim: a expulsão e a dizimação de corpos que ocupam lugares importantes na produção de novos territórios  e potências criativas de vida. (universidade, mercado formal de trabalho, produção artística, cultural ou intelectual, locais que a cisgeneridade e a branquitude não aceitam que corpos trans ocupem). 

Por outro lado, sob o manto do “cuidado”, esses corpos transvestigeneres são bem-vindos em todos os tipos de instituições manicomiais, em lugares onde, na hierarquia dos ditos normais, ocupam espaços destinados a servir à cisgeneridade e à branquitude em seus gostos e desejos, a exemplo dos pontos de prostituição e esquinas da cidade, lugares onde travestis são esquartejadas e assassinadas todos os dias. 

Dito isso, é certo que ocupo hoje o espaço da universidade como travesti graças a todas que vieram antes de mim, e espero que cada vez mais tenhamos terapeutas ocupacionais travestis, assim como assistentes sociais, professoras, reitoras, psicólogas, médicas… Enfim, desejo que essas identidades se apropriem daquilo que lhes produza sentido de estar e fazer no mundo e que possamos ocupar espaços e subverter o lugar que historicamente nos é dado como único possível e acessível.

*Ágatha Lima é travesti e acadêmica de terapia ocupacional da Universidade de Sorocaba (UNISO), foi presidenta do centro acadêmico de terapia ocupacional-MOVIMEN.TO – (2022-2023). É militante do fórum da luta antimanicomial de Sorocaba é também  co-fundadora e mediadora do coletivo de estudos em sexo, gênero e terapia ocupacional (CESGTO). 

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