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Por que Bolsonaro quer apagar o legado de Nise da Silveira?
Nesta semana, o Diário Oficial da União (DOU) publicou o veto de Jair Bolsonaro à nomeação da psiquiatra Nise da Silveira (1905-99) no livro dos Heróis e Heroínas da Pátria
27 de maio de 2022
Nesta semana, o Diário Oficial da União (DOU) publicou o veto de Jair Bolsonaro à nomeação da psiquiatra Nise da Silveira (1905-99) no livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. O projeto para a inclusão do nome da médica havia sido aprovado pelo Congresso nacional em abril deste ano. O ato e a justificativa oficial provocaram intensa reação no campo antimanicomial.
“Não é possível avaliar, nos moldes da referida Lei, a envergadura dos feitos da médica […] e o impacto destes no desenvolvimento da Nação […]”, justificou a Casa Civil.
Ao tomar conhecimento do veto governamental, a Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (Renila) lançou uma carta aberta exigindo a publicação do nome de Nise da Silveira entre os heróis e heroínas da pátria. O Desinstitute apoia essa iniciativa. O formulário para assinar (serão recolhidas até 01/06) a carta “Por que Nise da Silveira é uma ameaça para o presidente do Brasil?” se encontra no link: https://forms.gle/LxvXtibDnBeXokgT6.
O que o veto significa? O legado da psiquiatra e percursora da Terapia Ocupacional Nise da Silveira colide diretamente com o projeto de poder bolsonarista, que não tolera a diversidade subjetiva, respeito que é fundamental para a garantia dos direitos humanos. Nesta matéria, o Desinstitute explica os motivos que embasam essa afirmação.
Para o atual governo no poder, a manutenção da memória do trabalho desenvolvido por Nise da Silveira, em sua longa trajetória profissional e política, sua contribuição à luta pelo fim da lógica manicomial e desdobramentos ameaçam o projeto de país que Bolsonaro, sua base e aliados, no âmbito do Estado ou na iniciativa privada, buscam impor.
O atual governo promove o desmonte da política pública de saúde mental, ao priorizar o lucro, em detrimento dos serviços de acolhimento e cuidados em liberdade, ou seja, a desinstitucionalização progressiva prevista na chamada “Lei da Reforma Psiquiátrica” de 2001. A atual direção, literalmente, tira dinheiro do SUS e da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e investe em comunidades terapêuticas (CTs) e hospitais psiquiátricos. Essa afirmação pode ser conferida nos dados apresentados pelo Painel Saúde Mental: 20 anos da Lei 10.216/01, publicado pelo Desinstitute em 2021.
Esses atos seguem uma lógica neoliberal e conservadora. Primeiro, porque substituem o público e o universal pelo privado, no qual quanto mais internos maior o lucro. Segundo, porque nas CTs, majoritariamente administradas por entidades ligadas ao fundamentalismo religioso, há constantes denúncias de desrespeito à liberdade religiosa e à população LGBTQIA+, o que fica explícito na prática ilegal da chamada “cura gay” por estas instituições.
O que isso tudo tem a ver com Nise da Silveira? Nise foi militante do Partido Comunista por um período não muito longo, foi considerada subversiva pelo anticomunismo reinante na Guerra Fria, o que culminou com a sua prisão pela polícia política do Estado Novo e banimento do serviço público entre 1936 e 1944. Ela também foi perseguida durante a Ditadura Militar (1964-85).
Além do Estado e suas forças de repressão, Nise da Silveira foi duramente acossada por direções de hospitais e corporações médicas que defendiam a lobotomia, o choque elétrico, a punição em solitárias, camisas de forças, o espancamento e o uso abusivo de medicamentos no sentido de impedir qualquer reação dos internos. Todos esses métodos violentos eram considerados tratamentos justificados pelo saber médico então hegemônico.
A partir de estudos sobre o inconsciente, desde a obra do suíço Carl Jung, Nise da Silveira desenvolveu um trabalho emblemático com os internos dentro do Centro Psiquiátrico Nacional (depois, Centro Psiquiátrico Pedro II; hoje, Instituto Municipal Nise da Silveira), no qual montou um ateliê de artes livres, onde os pacientes produziam obras, entre essas, diversas mandalas. A médica chamou as produções de imagens do inconsciente e resolveu mostrar ao mundo a capacidade artística daquelas pessoas consideradas irreversivelmente “loucas” e “incapazes”.
Operários e outras pessoas privadas de liberdade em hospitais psiquiátricos puderam expressar sua arte por meio da pintura, do desenho e da escultura em seu ateliê. Ainda hoje esses trabalhos são expostos no Museu de Imagens do Inconsciente na cidade do Rio de Janeiro.
Entre essas peças, é possível observar algumas produzidas antes e depois de uma lobotomia (intervenção cirúrgica no cérebro na qual são seccionadas as vias que ligam as regiões pré-frontais e o tálamo), por exemplo. Nesse caso, fica evidente a destruição da subjetividade produzida por tais métodos pretensamente científicos.
Entre os artistas e artesãos do ateliê terapêutico, estava Adelina Gomes, uma mulher negra, de origem pobre, que foi internada após uma decepção amorosa e um ato intempestivo. Por conta desse comportamento socialmente inesperado, e por ser uma mulher negra, Adelina Gomes (1916-84) passou toda a sua vida em um hospital psiquiátrico. Hoje, suas obras são valorizadas como exemplos do modernismo e símbolos da liberdade.
Outra mulher negra que cruza seu caminho com a trajetória de Nise da Silveira foi Dona Ivone Lara (1915-2018), mais conhecida por sua obra musical no samba, mas que foi também enfermeira e assistente social, atuando junto à Nise no Serviço Nacional de Doenças Mentais.
Diante de sua trajetória e contribuições na defesa dos direitos humanos das pessoas em sofrimento psíquico e pessoas com deficiência (PcDs), é possível afirmar que Nise da Silveira continua sendo uma importante referência para o campo antimanicomial e para os serviços de acolhimento interdisciplinares e cuidados em liberdade do SUS.
Entre essas práticas está a Terapia Ocupacional, que inclui em seu bojo as mais diversas práticas artísticas e culturais, que incentivam os sujeitos a se expressarem livremente, o que inclui seus sonhos e desejos, possibilitando, assim, a elaboração de dores, angústias, conflitos e contradições.
A Terapia Ocupacional no Brasil, muito atacada pelo atual governo devido ao desinvestimento e à precarização do trabalho destes profissionais, está diretamente relacionada ao legado de Nise da Silveira e seu empenho em garantir o pleno desenvolvimento humano, psíquico, social e estético de seus pacientes.
A alagoana, ao contrário da imensa maioria dos médicos de sua época, em geral homens brancos, apostava na criatividade, na autonomia dos sujeitos e no poder de escolha dessas pessoas. O fato de essa memória estar tão viva não é tolerado por Bolsonaro, que quer que os “loucos” voltem para os manicômios e continuem a serem anulados e considerados desviantes, subversivos, perigosos e incapazes.