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Quando a resposta ao sofrimento é erguer muros, estamos construindo exclusão, não soluções
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24 de janeiro de 2025
A construção de um muro na região da Cracolândia, no Centro de São Paulo, pela prefeitura é um retrocesso nas políticas de saúde mental no Brasil. Segundo a administração municipal, o objetivo da medida é delimitar uma área para melhorar o atendimento dos indivíduos com uso problemático de drogas, oferecer mais segurança às equipes e facilitar a circulação de veículos.
Entretanto, essa ação reflete práticas que remetem à lógica manicomial e higienista que há anos é combatida pela reforma psiquiátrica. Para o coletivo Craco Resiste, a construção do muro cria “um campo de concentração de usuários” e reforça o estigma e marginalização dessas pessoas. Com cerca de 40 metros de extensão e 2,5 metros de altura, o muro separa os indivíduos em sofrimento mental e com dependência de substâncias químicas do restante da cidade e cria uma barreira física e simbólica que perpetua a exclusão social.
A medida, além de desumana, viola princípios básicos da reforma psiquiátrica brasileira e das diretrizes da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que preconizam o cuidado em liberdade, o respeito à dignidade humana e o fortalecimento de políticas públicas para atender pessoas em sofrimento mental de forma integral e humanizada. Como aponta o psiquiatra italiano Franco Basaglia, um dos principais nomes da luta antimanicomial, “é a sociedade que deve ser curada, não as pessoas isoladas”. Ao erguer muros, estamos criando mais exclusão, em vez de enfrentar as raízes sociais e estruturais do problema.
Práticas como essa remetem a uma lógica de higienização social, que historicamente busca afastar do espaço público aqueles que não se encaixam em um ideal normativo de cidadania. Autores como Erving Goffman, em sua obra Manicômios, Prisões e Conventos, mostram como a segregação institucional reforça o controle social e a desumanização dos marginalizados. Essas políticas também ignoram avanços importantes, como os princípios da Lei 10.216/2001, que defende o cuidado em liberdade e os direitos das pessoas em sofrimento psíquico no Brasil.
O confinamento de pessoas com uso problemático de drogas em um espaço delimitado por muros e gradis não resolve os problemas complexos relacionados ao uso de substâncias químicas. Pelo contrário, agrava o sofrimento, invisibiliza as necessidades dessas pessoas e reforça uma política de exclusão. É necessário investir na ampliação e fortalecimento da RAPS, incluindo Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), equipes de Consultório na Rua e outras iniciativas que promovam o cuidado humanizado, integral e em liberdade.
O Desinstitute repudia essa prática manicomial, que, ironicamente, recorre à mesma ferramenta que simboliza a segregação nos manicômios: o muro. Esse tipo de medida mostra que a lógica de exclusão e confinamento transcende os muros institucionais e se espalha no espaço urbano e no imaginário social. O cuidado das pessoas em sofrimento mental e com uso problemático de drogas deve ser pautado pelo acolhimento, pela inclusão social e pelo respeito aos direitos humanos. São Paulo não precisa de mais muros. Precisa de mais pontes, políticas públicas eficazes e uma abordagem que valorize a dignidade de todas as pessoas.