Notícias e publicações
O que está em jogo com aprovação do PL que regula a produção da cannabis medicinal no Brasil?
Aprovado no último dia 8 de junho em comissão especial da Câmara dos Deputados, Projeto de Lei 399/2015 cria regras para regulamentação de cultivo e comercialização de canabinoides para fins medicinais e industriais no país
10 de junho de 2021
O debate em torno dos efeitos da regulamentação da maconha medicinal no Brasil foi levantado mais uma vez nesta semana entre políticos e sociedade civil. Após quase dois anos de análises e discussões na Câmara dos Deputados e uma votação apertada na última terça-feira (8), o Projeto de Lei 399/2015, que propõe regular a produção e comercialização de medicamentos à base da cannabis sativa e do cânhamo industrial no Brasil, foi aprovado pela comissão especial da Casa responsável por analisar a proposta.
Pelo caráter conclusivo da tramitação, o PL poderia ser enviado diretamente ao Senado para votação, mas deputados contrários à medida já informaram que devem apresentar recurso para levar o texto ao plenário da Câmara.
Enquanto a proposta é repudiada por parlamentares alinhados à atual gestão federal e celebrada pela oposição, seu texto divide a opinião de integrantes de movimentos sociais e associações de pacientes, que apoiam a aprovação diante do cenário nacional proibicionista, mas julgam a medida insuficiente para fazer cessar e reparar injustiças estruturais impostas pela “guerra às drogas” no país.
Para o Desinstitute, a aprovação do projeto pelo Congresso Nacional representaria um passo adiante para a ampliação do acesso a direitos fundamentais por famílias brasileiras. Isso porque, desde 2015, o uso de canabinoides para fins medicinais já é legalizado no país, mas apenas por um grupo restrito de pessoas com condições de pagar por medicamentos importados e comercializados em território nacional a preços altos e inacessíveis pela maioria da população.
Dessa forma, mesmo que tardia, a regulamentação do cultivo e produção local da cannabis para fins terapêuticos, cujos efeitos benéficos no tratamento de diversas doenças e sintomas já foram atestados cientificamente por diversos estudos nacionais e internacionais, contribuiria para a inclusão de associações de pacientes e do próprio SUS (Sistema Único de Saúde) na cadeia produtiva e distributiva de medicamentos acessíveis à população brasileira.
“Estamos falando de tratamentos com eficácia comprovada que poderiam atenuar as dores e o sofrimento de milhares de famílias brasileiras que convivem com doenças graves e tratamentos agressivos, mas a quem é negado o acesso a um cuidado digno e já disponível no Brasil”, afirma Nicola Worcman, diretora de assuntos científicos do Desinstitute.
Sobre a criminalização pelo Estado brasileiro de determinadas drogas, como a própria maconha, Worcman lembra que, além de dificultar o acesso a tratamentos e serviços de saúde de qualidade, “as políticas proibicionistas e seus defensores se apoiam em discursos moralizantes sem qualquer evidência e colaboram para um cenário de violações, onde crescem, a cada ano, os índices de encarceramento e violência letal de populações vulnerabilizadas”, sobretudo de negros, jovens com baixa escolaridade e moradoras de regiões periféricas.
“Por isso, sabemos que apenas regular a venda da cannabis para fins medicinais e industriais não é o suficiente para reparar os estigmas e as injustiças presentes na vida de tantas pessoas que vivem e morrem reféns do proibicionismo e da criminalização das drogas”, reforça Worcman, que já atuou em serviços de saúde mental do SUS destinados a usuários problemáticos de álcool e outras drogas.
Por fim, o Desinstitute entende que a regulamentação da produção da cannabis para fins medicinais no Brasil, certamente, produz efeitos mais benéficos à sociedade do que a sua proibição, como vem sendo demonstrado por diversos países desenvolvidos e em desenvolvimento que, há anos, legalizaram e regularam a exploração da substância em seus territórios. Reconhece, contudo, que ainda há muito a ser feito para avançarmos como sociedade na construção coletiva de uma agenda pública que repense a atual política de drogas e seus efeitos violentos à população brasileira.
Veja abaixo o que está em jogo com a aprovação do PL 399/15 (ou clique aqui):
O projeto
- Aprovado no último dia 8 de junho em comissão especial da Câmara dos Deputados, o projeto de lei 399/2015 cria regras para a regulamentação no Brasil do cultivo e da produção medicinal e industrial* de derivados da cannabis, cuja possibilidade de plantio e colheita para “fins medicinais ou científicos” já está prevista na legislação vigente (Lei 11.343/2006). Com 17 votos favoráveis e 17 contrários, a proposta foi aprovada com o voto do relator, Luciano Ducci, que desempatou o placar. Pelo caráter conclusivo da tramitação, o PL poderia ser enviado diretamente ao Senado para votação, mas deputados contrários à medida já informaram que devem apresentar recurso para levar o texto ao plenário da Câmara.
“Liberou geral”?
- Diferente do que é defendido por opositores do PL, a proposta não libera a cannabis para fins medicinais no Brasil, pois o uso do canabidiol com finalidade terapêutica é autorizado no país desde 2015 e sua venda em farmácias regulamentada pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) há mais de um ano.
Afinal, legal ou ilegal?
- A comercialização de produtos à base de cannabis e seu uso para fins medicinais, portanto, já são legalizados no Brasil há anos, mas quem se beneficia com as regras aprovadas pela Anvisa ainda é um grupo muito restrito da população, formado majoritariamente por pessoas com condições de comprar os medicamentos importados pela indústria farmacêutica internacional a altos custos. Por exemplo, o preço de uma caixa de Mevatyl® – um dos medicamentos com canabidiol autorizados e registrados na Agência Nacional –, com três frascos de 10 ml cada, pode custar atualmente cerca de R$ 2.800 em farmácias brasileiras.
E o Brasil com isso?
- Apesar da cannabis medicinal ser legalizada no país, como o seu cultivo e a sua produção ainda não são regulados pelo Estado brasileiro, seguimos importando seus medicamentos e insumos, o que não apenas resulta no encarecimento dos produtos, mas impossibilita a geração de lucro e empregos advindos da produção e comercialização da substância no país. Diante desse contexto, o PL 399/2015 propõe a ampliação do acesso aos tratamentos com canabinoides a partir da regulamentação do cultivo e da inclusão das associações de pacientes e do próprio SUS na cadeia produtiva, mediante redução de custos.
Eficácia comprovada
- Apesar do estigma presente em torno das drogas ilícitas e de seus usuários, principalmente em países proibicionistas como o Brasil, há evidências científicas robustas que indicam que os derivados da maconha podem ser utilizados no tratamento de doenças como Alzheimer, Parkinson, glaucoma, autismo e epilepsia. Além disso, há estudos conclusivos sobre a eficácia dos canabinoides contra dores crônicas e no tratamento de doenças graves como esclerose múltipla e câncer, por seus efeitos antitumoral e amenizadores de náuseas e enjoos causados pela quimioterapia.
Experiência internacional
- Nos últimos cinco anos, dezenas de países desenvolvidos ou em desenvolvimento, como Alemanha, Austrália, Canadá, Chile, Holanda, Israel, Reino Unido, Uruguai e Estados Unidos (apenas em parte dos estados), aprovaram leis para permitir o plantio de Cannabis com fins medicinais. Nos EUA, por exemplo, o uso medicinal é liberado em 36 estados e no Distrito de Columbia, com registro dos pacientes e regras para cultivo, industrialização e comercialização. Já em Israel, os produtos feitos a partir da cannabis são padronizados e receitados por médicos, enquanto empresas locais ganham dinheiro cultivando maconha, além de desenvolverem e exportarem remédios, com geração de receitas ao Estado e empregos à população do país.
Fontes consultadas: Estudo “Os efeitos da Cannabis e das canabinoides na saúde: o estado atual das evidências e recomendações para pesquisa – 2017” (tradução livre) e EMCDDA (Centro Europeu de Monitoramento de Drogas e Drogadição).