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Trabalho em rede, criatividade e evidências devem guiar políticas públicas, avalia Elizabeth Ruth Wilson
Em entrevista ao Desinstitute, estrategista norte-americana especializada em saúde global e gestão pública fala sobre experiências com políticas de drogas e planos de atuação no Brasil
22 de outubro de 2021
União, criatividade e dados norteiam o trabalho da estadunidense Elizabeth Ruth Wilson, consultora e estrategista de políticas públicas e projetos sociais para governos e organizações civis internacionais. Mestre em Gestão Pública pela universidade de Harvard e em Saúde Global por Yale, ela é também fundadora da Euth Foundation, uma organização civil sem fins lucrativos que busca promover transformações sociais por meio de ações educativas, com atual foco nos Estados Unidos e no Brasil.
Entre os projetos que Wilson desenvolveu nos últimos anos em seu país, um plano estratégico de curto prazo para lidar com a crise de opióides no município de Huntington, no estado de West Virginia, notabilizou sua atuação no campo da saúde pública e recebeu elogios de membros do Gabinete da Política Nacional de Controle às Drogas da Casa Branca.
O trabalho de planejamento iniciado pela consultora em 2016 seria colocado em prática ao longo dos dois anos seguintes. Na época em que foi contratada, a epidemia de opióides na região já durava mais de uma década de doenças, sofrimento e mortes entre a população local causadas pelo uso problemático das drogas.
Sob a alcunha de “capital da overdose” nos EUA, Huntington se tornou a cidade com a maior taxa de mortalidade por overdose no país, em 2015 (116 mortes a cada 100 mil habitantes), índice dez vezes maior que a média nacional.
Segundo detalhado no plano estratégico desenvolvido por Wilson, o aumento descontrolado do uso problemático de opióides na região surgiu com o declínio dos empregos nas indústrias de manufatura, mineração e construção civil de West Virginia, a partir do início dos anos 2000.
“Os residentes do estado que trabalham como operários nas indústrias usavam opióides prescritos [medicamentos] para lesões e dores crônicas relacionadas ao trabalho. Como o desemprego aumentou e o Estado passou a reprimir o uso de drogas prescritas, os usuários de opiáceos se voltaram a alternativas mais baratas, como a heroína”, informa o documento.
Em entrevista ao Desinstitute, Elizabeth Wilson conta que foi preciso reconhecer, antes de tudo, que os moradores de Huntington enfrentavam uma crise de saúde pública. Além disso, lembra que, diferente do que ocorreu durante as epidemias de crack nas décadas de 1980 e 1990 nos EUA, que atingia majoritariamente populações negras e pobres de centros urbanos do país, a crise de opióides em West Virginia afetava em grande parte a população branca da região.
“Muitas pessoas têm pensamentos diferentes sobre isso, mas uma possibilidade que explicaria esse fato é que alguns médicos não prescreviam opióides [medicamentos para dor] com a mesma frequência a pessoas negras, por causa de pensamentos estigmatizados que tinham sobre a população negra, como por exemplo que ela era mais propensa a desenvolver problemas com drogas ou que não sentiam tanta dor”, diz.
Para Wilson, há relação entre a mudança de perspectiva do Estado de passar a encarar uma epidemia de drogas como um problema de saúde pública – e não mais pela lógica penal punitivista – com a raça e as condições sociais da população pelo país. Por isso, ela ressalta a importância de provar que o ponto de partida “deve ser o mesmo na resposta às crises que afetam todas as pessoas” que sofrem pelo uso problemático de quaisquer substâncias.
Educação e Prevenção
As metas do plano estratégico consideravam três eixos principais de atuação: Prevenção, Tratamento e Recuperação e Aplicação da lei. Com a alta de casos de overdose entre adultos, de consumo precoce de álcool e outras drogas entre crianças e adolescentes, bem como de diagnósticos em bebês com síndrome de abstinência neonatal, o documento propôs mais investimentos do governo municipal em programas sociais educacionais, de prevenção ao uso abusivo de drogas e de redução de danos.
Além disso, a estratégia indicava o desenvolvimento de programas de tratamento e recuperação de usuários de drogas e vítimas de overdose junto à proposição de leis para reduzir a punição estatal contra crimes não violentos.
Durante uma palestra em 2018, a socorrista e chefe do corpo de bombeiros de Huntington, Jan Rader, relatou que, no ano anterior ao evento, a prefeitura havia investido na criação de um centro independente e especializado no cuidado a usuários problemáticos de drogas.
“Tudo em um só lugar, por assim dizer. O paciente entra e é imediatamente avaliado por especialistas em uso abusivo de substâncias químicas, que trabalham com os pacientes para dar opções de tratamento baseadas nas próprias necessidades individuais deles”, relata Rader.
Segundo a chefe do corpo de bombeiros, o projeto “ajuda de várias maneiras e dá aos socorristas um lugar para encaminhar os pacientes que não estão mais em situação de risco de vida e que se recusaram a ir ao hospital. E isso também alivia os prontos-socorros lotados”.
De acordo com Rader, em 2018, as taxas de overdose e mortes por overdose no município haviam caído 40% e 50%, respectivamente, em relação ao ano anterior.
Redução de Danos
Questionada sobre a inclusão da abordagem de redução de danos nas propostas de programas destinados aos sobreviventes da epidemia de drogas, Wilson afirma: “Nós partimos do princípio que uma solução única não poderia ser efetiva para tantas pessoas diferentes. Algumas soluções podem funcionar com algumas pessoas, mas a gente entendeu que precisava oferecer opções a todas elas. Há uma frase em inglês que diz: “meet people where they are at” (encontre as pessoas onde estiverem), e foi isso que nós passamos a fazer.
A redução de danos propõe diminuir os riscos à saúde de quem não consegue ou não quer deixar de usar drogas, ao considerar o protagonismo do usuário sobre as suas próprias decisões, bem como seu contexto social, sua história, suas vivências cotidianas e suas singularidades como indivíduo.
Segundo Wilson, tanto nos EUA como em muitos lugares do mundo, ainda existe uma dificuldade em aplicar a redução de danos em políticas públicas porque “pessoas na sociedade criam muitos estereótipos em torno do que a abordagem propõe”. Por isso, ressalta a importância de que discussões sobre os efeitos exitosos da estratégia não sejam restritas a membros de instituições envolvidas com políticas de drogas e saúde, como universidades e organizações civis, mas incluam a participação da própria comunidade.
Trabalho em rede baseado em evidências (e criatividade)
A estrategista conta ainda que para chegar ao resultado final do planejamento, lançado em maio de 2017 pela prefeitura de Huntington, foi preciso reunir profissionais de diferentes áreas de atuação na gestão pública e membros da comunidade local.
“Tínhamos muitas conversas entre pessoas com experiências em diversas áreas, como saúde, segurança, moradia e educação, vindas do poder público, universidades, organizações civis e da própria comunidade”. Segundo ela, o trabalho em rede se provou uma estratégia importante também para o compartilhamento de estatísticas e dados que apontavam a origem dos problemas locais e permitia à equipe “idealizar soluções mais criativas”.
A compreensão de que o trabalho em rede entre diferentes setores da sociedade pode trazer alento a problemas sociais complexos é a razão pela qual Wilson se dedica a estudos e projetos em áreas distintas. “Pobreza afeta a moradia, que afeta a educação, que tem efeitos sobre a saúde, e assim por diante. E a gente não consegue resolver esses problemas, como fome, desemprego, falta de moradia e analfabetismo, se olharmos para eles de forma isolada”, defende.
Na avaliação de Wilson, a epidemia de opióides em West Virginia mostrou que é preciso oferecer respostas “melhores, mais criativas e com mais compaixão” a todas as pessoas em situação de sofrimento relacionado ao uso problemático de drogas, sejam elas medicamentos prescritos, crack ou quaisquer outras.
Planos no Brasil e interseccionalidade histórica
Por fim, quando questionada sobre seus planos de atuação no Brasil, pela Fundação Euth, nos próximos anos, Wilson conta que estuda o desenvolvimento de projetos no país para alfabetizar pessoas.
E por que aqui? “Sinto que tenho uma conexão com o país que vem das comunidades negras. Além disso, conversando com muitos brasileiros, percebi que o Brasil e os Estados Unidos compartilham muitos problemas sociais. Um deles é a falta de acesso à educação de qualidade”.
A estadunidense defende ainda que, nos EUA, no Brasil e pelo mundo inteiro, as comunidades mais vulneráveis, que mais sofrem com desigualdades sociais, são formadas majoritariamente por populações negras e pobres, sem acesso a direitos básicos, como saúde, moradia e educação.
“Isso resulta do longo período de escravização de pessoas negras, que continua a afetar a situação de desigualdade entre a nossa população. Eu não quero ajudar só pessoas negras, quero ajudar pessoas que, no caso do Brasil, não têm acesso à alfabetização, por exemplo. E como sabemos, esse problema não tem a ver com a raça, mas com a história”, conclui.