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Uma breve e recente história da Reforma Psiquiátrica brasileira

Atualmente ameaçada, conquista histórica resultou da luta de trabalhadores da saúde, associações familiares e pessoas com longo histórico de internações psiquiátricas no país

Uma breve e recente história da Reforma Psiquiátrica brasileira
#ParaTodosVerem: Foto de uma bandeira verde com a seguinte frase escrita em tinta preta e amarela: "Liberdade é o melhor cuidado". Foto por: André Antunes (EPSJV/Fiocruz)

8 de julho de 2021

Por Manuela Rached Pereira

Era junho de 1979, quando o renomado psiquiatra italiano Franco Basaglia desembarcou no Brasil. Precursor do movimento de Psiquiatria Democrática na Itália e crítico ferrenho do poder opressor que a psiquiatria é capaz de exercer sobre a população, Basaglia visitava o país pela terceira vez para um ciclo de conferências realizadas em São Paulo, Belo Horizonte e no Rio de Janeiro, conforme descrito por André Ricardo Nader, em artigo da Revista Lacuna:

“Basaglia fazia uma breve fala, traduzida simultaneamente para sua plateia, sobre o controle que a psiquiatria exercia sobre a população e expunha o uso perverso do discurso científico dessa disciplina que, utilizando-se da instituição manicômio, fazia a gestão das massas de indesejáveis do ponto de vista econômico (na figura daqueles que não produzem), social (na figura daqueles que não seguem a ordem moral) e político (na figura daqueles que não obedecem ao regime vigente). Transmitia também as experiências práticas que acumulara na Itália nas décadas de sessenta e setenta (…). Sua mensagem era clara: além de denunciar a situação da psiquiatria, queria incentivar que seus ouvintes abandonassem a discussão e fossem à prática iniciar mudanças — ‘contra o pessimismo da razão, o otimismo da prática’, dizia ele. Dia a dia, cidade a cidade, o ritual era basicamente o mesmo. No entanto, algo mudou quando chegou a Minas Gerais. Após sua visita ao Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena, conhecido como Colônia ou Cidade dos Loucos, não pôde proferir sua conferência. O horror era visível e, segundo relatos, Basaglia pareceu ter ficado profundamente deprimido. Declarou que o que vira era ‘pior que um campo de concentração'(…)”.

A experiência italiana de desinstitucionalização em psiquiatria e sua crítica radical ao manicômio foi inspiradora aos movimentos antimanicomiais que emergiam no país naquele período, como o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), fundado em 1978 e formado por trabalhadores da saúde, associações de familiares, sindicalistas e pessoas com longo histórico de internações psiquiátricas.

Ao longo das décadas seguintes, impulsionados pela Constituição de 1988 e pela criação do SUS (Sistema Único de Saúde), os movimentos nacionais e seus apoiadores fizeram avançar ações práticas de cuidado em liberdade sob o lema “por uma sociedade sem manicômios”. Entre elas, as primeiras experiências regionais bem sucedidas de atendimento psicossocial de base comunitária que inspiraram, ainda nos anos 80, a formulação – e posterior aprovação – da Lei nº 10.216, conhecida como “Lei da Reforma Psiquiátrica”. 

Promulgada em 6 de abril de 2001, a Lei 10.216 estabeleceu novas diretrizes para políticas de saúde mental, ao prever a substituição progressiva dos manicômios no país por uma rede complexa de serviços que compreendem o cuidado em liberdade como elemento fundamentalmente terapêutico.

Dessa forma, estabeleceu-se, entre outras garantias, que a pessoa com transtorno mental, “sem qualquer forma de discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno (…)”, deve ser “tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade [art. 2º, § II]”.

Materializada na lei, a reforma psiquiátrica buscava, portanto, orientar os poderes executivos a investirem em processos de desinstitucionalização de pessoas internadas por longos períodos de permanência – grande parte delas sem qualquer vínculo remanescente com a sociedade. Ou seja, procurava incidir sobre discursos, saberes e práticas psiquiátricas seculares que, no passado e até hoje, sustentam o estigma da loucura pelo diagnóstico da “doença mental” e, em muitos casos, da “dependência química” pelo consumo de drogas, a fim de defender a internação hospitalar, o absenteísmo e a segregação social como princípios básicos de tratamento em saúde mental.

Reconhecimento internacional

A mudança de paradigma da política nacional de saúde mental, bem como a construção de novos serviços de base comunitária no campo, levaram a Organização Mundial da Saúde (OMS) a reconhecer, em 2003, a relevância global da política pública brasileira. Foi também sob esse novo contexto que a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), principal órgão autônomo da Organização dos Estados Americanos (OEA), condenou o Estado brasileiro, em 2006, pelo que ficou conhecido como o “caso Damião Ximenes Lopes”, que leva o nome do jovem brasileiro espancado e morto em um hospital psiquiátrico no município de Sobral, Ceará, naquele mesmo ano.

Outras conquistas no campo normativo acompanhadas de forte mobilização internacional foram a aprovação, pelo Congresso brasileiro, da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (com status de Emenda Constitucional) no ano de 2009,  e a criação da Lei 13.146/2015,  conhecida como Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI), que abarca os direitos das pessoas com transtornos mentais ou decorrentes do uso de álcool e outras drogas.

Nas últimas décadas, portanto, a pressão popular de movimentos antimanicomiais, somada ao monitoramento de órgãos de controle nacionais e internacionais, contribuiu para o fortalecimento e a ampliação de leis, políticas e serviços públicos comunitários de atenção psicossocial no Brasil. Um processo recente que resultou no fechamento de milhares de leitos em hospitais psiquiátricos pelo país – de 80 mil até os anos de 1980, para cerca de 19 mil, em 2020. 

Cenário de desmonte da política nacional

Apesar das significativas conquistas alcançadas com a implementação do SUS e pelo processo gradativo de reforma psiquiátrica no Brasil, políticas e serviços públicos de saúde e assistência social vêm sendo desmontados e aparelhados por grupos de interesse privado desde o final de 2016. A falta de monitoramento e transparência sobre o desenvolvimento das políticas de saúde mental no país são algumas das marcas que inauguram essa mudança.

Durante a gestão federal interina de Michel Temer e, nos últimos anos, sob o governo do atual presidente da República Jair Bolsonaro, recursos federais, antes voltados à ampliação de serviços de base comunitária inseridos no SUS, foram paralisados, ao passo em que representantes de entidades privadas, que incluem associações psiquiátricas e empresários ligados a instituições asilares, passaram a incidir cada vez mais sobre a agenda pública. 

Em 2017, por exemplo, o Ministério da Saúde, à revelia de qualquer diálogo com a população, a sociedade civil ou mesmo órgãos voltados ao controle social, como o Conselho Nacional de Saúde (CNS), incluiu os hospitais psiquiátricos no centro da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que estrutura a política de saúde mental brasileira, por meio da alteração de portarias ministeriais.

Já em 2019, as comunidades terapêuticas, que baseiam seus serviços no tripé laborterapia (trabalho não remunerado), oração e abstinência, passaram a ser regulamentadas pela Lei 13.840, conhecida como “Nova Lei de Drogas”, e amparadas na Política Nacional sobre Drogas (Pnad), que desde então prevê “estimular e apoiar, inclusive financeiramente, o aprimoramento, o desenvolvimento e a estruturação física e funcional das Comunidades Terapêuticas (…)”. 

Segundo informações do Ministério da Cidadania, o repasse de recursos públicos a entidades que administram comunidades terapêuticas no país passou de R$157 milhões, em 2019, para R$300 milhões, em 2020. À medida em que a ampliação do investimento ocorria, órgãos e mecanismos públicos nacionais denunciavam a falta de fiscalização, publicização de informações, diretrizes práticas e critérios técnicos que garantiriam o funcionamento legal dessas instituições no país. 

A despeito da “Lei da Reforma Psiquiátrica”, que proíbe a “internação de pacientes com transtornos mentais em instituições com características asilares”, comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos brasileiros seguem recebendo grandes investimentos públicos e funcionando como locais de privação de liberdade e graves violações de direitos humanos, como revelam os relatórios das últimas inspeções nacionais em Comunidades Terapêuticas (2019) e Hospitais Psiquiátricos (2019).

Sob a coordenação de órgãos e conselhos públicos como o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, o Conselho Federal de Psicologia e o Conselho Nacional do Ministério Público, as inspeções brasileiras alertam, desde 2015, para a situação alarmante de desassistência na atenção à saúde em hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas pelo país, onde foram verificadas graves e múltiplas violações cotidianas de direitos humanos contra pessoas em sofrimento ou com transtorno mental, que incluem aquelas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas. Entre as ilegalidades, foram constatadas condições sanitárias degradantes, falta de infraestrutura e equipe técnica, práticas de tortura, medicalização excessiva, trabalho forçado e crimes de cárcere privado, que remontam o passado de violações em hospícios e manicômios judiciários.

Adicionalmente, a insuficiência de dados públicos atualizados limita a possibilidade de análise da evolução dos gastos federais nos últimos anos com políticas de saúde mental, álcool e outras drogas. Mas o acesso ao orçamento do Ministério da Saúde destinado aos procedimentos de internação em hospitais psiquiátricos brasileiros, em 2017 e 2018, permite constatar um crescimento expressivo do financiamento público em hospitais psiquiátricos em detrimento dos recursos aplicados na rede pública extra-hospitalar, composta por serviços como os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), as UAs (Unidades de Acolhimento) e os Centros de Convivência e Cultura.

Segundo dados do último Relatório de Inspeção Nacional em Hospitais Psiquiátricos, em 2018, o Ministério da Saúde destinou à Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas o montante de aproximadamente R$ 1,5 bilhão, o que representa um aumento de aproximadamente 5% sobre o orçamento de 2017. No mesmo período, porém, o aumento do financiamento destinado aos hospitais psiquiátricos cresceu cerca de 26%, com um aporte de R$ 97 milhões às instituições – que incluem aquelas que haviam sido “indicadas para descredenciamento, por não disporem das condições mínimas de assistência”.

Para mais informações, acesse aqui o relatório na íntegra e leia mais em: desinstitute.org.br/noticias/por-que-somos/.

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